Fri, 11 Oct 2019 in Revista Educação & Formação
CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES DA FORMAÇÃO DE DOCENTES DA ARGENTINA: POLÍTICAS E REFORMAS DESDE OS ANOS 801Versão em português traduzida originalmente do inglês por Karla Angélica Silva do Nascimento.
RESUMO
Entender as continuidades e transformações na formação de docentes na Argentina durante o período 1985-2015 requer reconhecer simultaneamente duas dinâmicas-chave de longa data: primeiro, os debates ideológicos, políticos e pedagógicos sobre quem poderia e deveria ser um professor e de que instituição deveria estar encarregada de educar/produzir bons professores na Argentina; segundo, o ensino, como qualquer outra ocupação, é tensionado por múltiplos conflitos de trabalho com dimensões econômicas, políticas, culturais e sociais que se cruzam. Neste texto, argumenta-se que, em termos gerais, essas duas dinâmicas se aglutinam e se cristalizam em torno da definição do status profissional dos professores e consequentemente nas instituições designadas para educá-los, os Programas de Formação de Professores.
Main Text
1 INTRODUÇÃO
A Argentina tem uma longa tradição de extrema polarização ideológica e cultural em torno da educação, e a história recente não é exceção. As posições antagônicas são difundidas em todas as áreas da sociedade e consequentemente é incomum que os estudiosos de perspectivas políticas e ideológicas opostas cheguem a um consenso ao interpretar problemas educacionais. Uma dessas coincidências excepcionais é a centralidade atribuída à relação íntima e entrincheirada entre o Estado, especialmente no nível federal, e o Sistema de Formação de Professorxs da Argentina (doravante denominado SFP)2.
A literatura aponta duas dinâmicas históricas importantes que ainda ressoam e são evocadas em processos contemporâneos que enquadram a estrutura, a qualidade, o status e os entendimentos culturais em torno do SFP. A primeira e mais antiga dinâmica surgiu desde o início da consolidação da Argentina como Estado-Nação, quando o ensino era visto como uma profissão de Estado3. Por mais de um século, o Estado federal manteve um papel dominante na definição, regulamentação, governança e gestão do SFP e da profissão docente. As relações entre o Estado e as organizações de professorxs flutuam entre colaboração e dependência de conflitos e contradições, dependendo das condições econômicas e do contexto político. O segundo enquadramento dinâmico do SFP emerge dos múltiplos debates ideológicos e pedagógicos sobre quem poderia e deveria ser um professor e quais instituições deveriam ser responsáveis pelo SFP. Esses debates foram tensionados por múltiplos conflitos com dimensões econômicas, políticas, religiosas, culturais e sociais que se cruzam4.
Neste artigo, examinamos as políticas e reformas de formação de professorxs na Argentina desde meados dos anos 1980. Argumentamos que compreender as continuidades e transformações do SFP na Argentina requer considerar como as duas dinâmicas observadas acima se fundiram e se manifestaram simultaneamente em torno do status profissional dxs professorxs e consequentemente das instituições e programas designados para educá-los.
Uma advertência sobre nosso uso da noção de “profissão” ao longo deste artigo é necessária aqui. Em termos gerais, os campos profissionais ou as “profissões” são aceitas, estabelecidas e reconhecidas como tendo desenvolvido altos níveis de conhecimentos especializados e especializados que não podem ser adquiridos informalmente, sendo, por essa razão, áreas profissionais autorreguladas. O conhecimento especializado de uma profissão é estruturado para ser reconhecido e reproduzido pelos profissionais da área. Como em outros países, na Argentina, o campo do ensino sobre formação docente é muito heterogêneo, já que ele não é organizado em torno de um corpus de conhecimento baseado em evidências geradas por pesquisas desenvolvidas dentro de um paradigma comum, com conceitos que são categorizados e compartilhados pela grande maioria dos profissionais do campo, que poderia derivar num sistema homogêneo de controle de qualidade, como esperado em outras profissões (MEHTA, 2013).
Dadas as enormes variações e inconsistências dos modelos de formação dxs professorxs na Argentina, mesmo dentro de um mesmo sistema, pode ser mais apropriado se referir aos professorxs como “semiprofissionais” (LORTIE, 1969). Acreditamos que o ensino é uma profissão e que existem muitos educadores na Argentina que são profissionais de destaque, mas é importante reconhecer que, no período analisado, as condições de trabalho, a formação e os níveis de codificação do conhecimento pedagógico necessários para fortalecer o reconhecimento do ensino como profissão ainda são insuficientes. Em outras palavras, usamos o termo “profissionais no campo do ensino” como expressão de uma aspiração, não como uma categorização precisa5.
Nós organizamos este texto em quatro seções. A primeira seção traz uma breve contextualização histórica da evolução do SFP e particularmente do legado da ditadura militar, que se concluiu no início da década de 1980. A segunda seção apresenta mudanças e continuidades na governança e estrutura da formação de docentes desde meados da década de 1980, apresentadas em torno de dois períodos políticos. A terceira seção examina as mudanças no perfil socioeconômico dos estudantes do SFP. E a seção final conclui o artigo destacando a falta de transformações substanciais, apesar de três décadas de esforços e reformas políticas.
2 BREVE HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DE DOCENTES E O LEGADO DOS TEMPOS AUTORITÁRIOS
Antes de abordarmos sobre o triste legado da ditadura militar, vale a pena fornecermos uma breve história da formação de professorxs na Argentina. Em 1869, o presidente Domingo Faustino Sarmiento (1868-1874) estabeleceu a primeira instituição pública de formação formal de professorxs e, por quase um século – até 1969 –, qualquer pessoa que quisesse se tornar professor/a era obrigado/a a frequentar uma Escola Normal6. As Escolas Normais eram escolas de ensino secundário que ofereciam uma credencial de ensino para o ensino primário ou pré-escolas; elas eram independentes e ainda coexistiam com as outras modalidades do ensino secundário. A formação para o ensino secundário, por outro lado, foi ministrada a nível terciário, inicialmente pelas universidades nacionais. O ensino era uma ocupação considerada feminina e socialmente apropriada para jovens católicas de classe média, que levaram um capital social e cultural particular e um tanto homogêneo para a profissão docente. Essas primeiras pioneiras aceitaram as exigências do Estado, que, como empregador dominante (um quase monopólio, se não fosse pelas poucas escolas privadas), oferecia baixos salários, mas muitos elogios formais, juntamente com alto prestígio social em relação à maioria da população que ainda trabalhava nas zonas rurais e frequentemente era considerada “incivilizada” e pouco inteligente pelas elites políticas e comerciais.
As Escolas Normais permaneceram no nível do ensino secundário até 1969, quando a formação de professorxs “subiu” para um nível terciário. Essa mudança aumentou os anos de estudo necessários para se tornar um professor e tornou as Escolas Normais parte de um sistema de ensino superior não universitário. A formação para professorxs do ensino secundário continuou no nível terciário e, no final dos anos 1960, as instituições privadas de formação de docentes também se espalharam.
No final dos anos 1970, o país iniciou um processo de rearranjo político e estrutural do sistema educacional altamente hierárquico e centralizado, levando à descentralização da educação (PURYEAR; BRUNNER, 1994). O processo começou com a descentralização do ensino fundamental no final da década de 1970, durante a ditadura mais brutal e criminosa, e foi concluído em meados da década de 1990, durante um governo democrático recuperado com a descentralização do ensino secundário e superior, incluindo o SFP. Em ambos os períodos, as escolas foram transferidas do nacional para os 24 governos provinciais (incluindo o distrito federal de Buenos Aires). É importante destacarmos que o governo militar tinha um componente político-pedagógico conceituado como “Projeto Educativo Autoritário”, que perseguiu, prendeu, torturou e fez desaparecer centenas de educadores e estudantes (TEDESCO; BRASLAVSKY; CARCIOFI, 1983). Como parte de um plano sistemático de impor terror à população, o Projeto Educativo da ditadura impôs um currículo muito rígido e ideologicamente hiperconservador, censurou publicações e vigiou de perto o funcionamento de escolas, universidades e espaços culturais.
A ênfase na governança descentralizada implicava que o Estado nacional perdesse o quase monopólio que tinha sobre o emprego de professoras de ensino básico. Os principais aspectos da formação e contratação de docentes com os governos provinciais permaneceram essencialmente inalterados, exceto pelas maiores variações encontradas nos salários e nas escalas salariais (RAZQUIN, 2004). No geral, durante a ditadura militar, o currículo do SFP permaneceu sob o controle do Estado nacional, sendo fortemente influenciado pelos setores mais conservadores da igreja católica, com o objetivo principal de garantir maior controle e disciplina na educação, enfatizando o papel subsidiário do Estado.
3 FORMAÇÃO DE DOCENTES DESDE MEADOS DA DÉCADA DE 1980: MUDANÇAS E CONTINUIDADES
Em dezembro de 1983, com o presidente eleito Raúl Alfonsín (do partido centrista liberal União Radical Civil), a Argentina fez a transição para um período de governos democraticamente eleitos. Na educação, assinalou o início de um período renovado de otimismo pedagógico: as escolas e xs professorxs recuperaram um papel especial no processo de redemocratização política, social e educacional (GENTILI, 1994). Houve um reconhecimento público de que, para o setor da educação ser uma parte vital do processo de democratização, era fundamental melhorar os sistemas de SFP, bem como as condições de trabalho, salários e status profissional dxs professorxs. Essas expectativas, no entanto, logo se depararam com os limites impostos pelo contexto de uma sociedade ainda traumatizada, e suas fracas instituições democráticas eram confrontadas com ameaças de revoltas militares, inflação desenfreada, ônus financeiro de uma dívida externa inchada, instabilidades econômicas relacionadas com a inflação e posição frágil da economia do país em um momento de aceleração da globalização (FISCHMAN; BALL; GVIRTZ, 2003).
Em 1988, após sete pequenas greves, a Confederação Nacional de Docentes lançou uma greve de 47 dias, que culminou com uma grande manifestação, chamada La Marcha Blanca (A Marcha Branca), exigindo melhores salários e condições de trabalho. Depois de um período inicial de apoio popular, xs professorxs argentinxs não se saíram muito bem nas reivindicações em defesa de seus salários e na melhoria das condições de trabalho (CARNOY; TORRES, 1994). No final da greve, as opiniões negativas sobre professores de escolas públicas foram frequentemente expressas em numerosos artigos de jornais e revistas e alguns autores relataram o declínio perceptível nas matrículas em programas de formação de docentes com essas opiniões negativas (BIRGIN, 1999). Em suma, de meados da década de 1980 ao início da década de 1990, o otimismo pedagógico e as tão esperadas mudanças na educação foram relegados a um lugar secundário.
3.1 FORMAÇÃO DOCENTE EM TEMPOS NEOLIBERAIS (1989-2001)
De 1989 (quando o presidente Carlos Menem, do Partido Justicialista, assumiu o cargo) ao colapso econômico e político sofrido em 2001, a Argentina passou por vários pacotes de programas de ajuste estrutural patrocinados e supervisionados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (PHILLIPS, 1998). O país tornou-se um exemplo importante do que foi definido como um movimento de reforma neoliberal, implementando em um curto espaço de tempo um amplo programa de privatização de empresas estatais e a reestruturação do papel do Estado (HURSH, 2000). Essa reforma neoliberal, como aconteceu com a reforma dos anos 1970, justificava-se como o melhor caminho para a “modernização” do país.
As políticas de educação e SFP espelharam debates políticos mais amplos. Uma estrutura de educação neoliberal equiparava o programa de ajuste estrutural econômico, embora reestruturando o papel do Estado na educação por meio da descentralização fiscal, mais do que as políticas de privatização. O referencial neoliberal foi definido entre 1992 e 1995 e emergiu das seguintes leis: Lei de Transferência (1992), Lei Federal de Educação (1993) e Lei do Ensino Superior (1995). As leis foram acompanhadas por acordos federais desenvolvidos no âmbito do Conselho Federal de Cultura e Educação (CFCyE). Juntos, eles constituíram uma nova estrutura discursiva e regulatória para estratégias, programas e projetos para a transformação da formação de docentes7.
Como observado anteriormente, a Argentina passou por um processo de descentralização que começou no final da década de 1970, com a transferência de escolas primárias do governo nacional para os provinciais. Em 1991-1992, na segunda etapa do processo de descentralização, o governo transferiu escolas de educação secundária administradas nacionalmente e educação terciária (não universitária) para as administrações provinciais, incluindo as instituições SFP. De modo semelhante à descentralização das escolas elementares, as motivações financeiras e as vendas ideológicas foram componentes significativos dessa reforma educacional e, mais uma vez, as questões pedagógicas e educacionais não foram a motivação motriz.
A Lei Federal de Educação de 1993 e a Lei do Ensino Superior de 1995 estabeleceram novas bases para a governança e gestão da formação docente no contexto de uma importante reestruturação do sistema educacional8. As duas leis regulamentaram os direitos e obrigações dos educadores, estabeleceram os papéis dos governos nacional e provincial para o SFP e criaram a Rede Permanente de Formação de Docentes Federais (RFFDC). Para organizar a formação de docentes, o CFCyE e o Ministério da Educação Nacional aprovaram regras gerais e específicas, formalizadas em uma série de documentos conhecidos como “acordos”. O objetivo era garantir o desenvolvimento de novos procedimentos para a reorganização institucional, a transformação curricular, o sistema nacional de credenciamento das instituições SFP e a validade nacional das credenciais de ensino.
Os “acordos” caracterizaram o sistema de formação docente como um processo contínuo e estabeleceram os seguintes níveis: a) educação inicial conducente a uma credencial de ensino; b) sistema de formação de professorxs em serviço; c) formação de professorxs para novos papéis profissionais; e d) formação pedagógica de profissionais sem certificação docente. A Rede Permanente de Formação de Docentes Federais (RFFDC) representou a institucionalização de políticas voltadas à formação de professorxs para o desenvolvimento de uma estrutura educacional capaz de ser nacional em seu escopo, estabelecendo critérios de qualidade pedagógica. Essa institucionalização alocou recursos e definiu estratégias para aumentar o prestígio e a relevância da formação de docentes no sistema educacional geral.
Algumas consequências negativas para a formação docente já eram visíveis no final da década de 1990, não necessariamente devido à nova estrutura normativa em si, mas principalmente devido à implementação deficiente e à falta de intervenção e regulamentação do Estado (ARGENTINA, 2015b). Primeiro, o que era um sistema nacional historicamente unificado de educação para professorxs primários/as transformou-se em um sistema diversificado de instituições, com uma paisagem desarticulada, fragmentada e segmentada, incluindo instituições privadas e universidades (ARGENTINA, 2005a). As instituições funcionavam geralmente de forma isolada e, em alguns casos, mal articuladas com as escolas, que recebiam professorxs praticantes. Em segundo lugar, a formulação de políticas e a gestão da formação docente foram geralmente colocadas em conjunto com as escolas secundárias nas administrações provinciais, comprometendo a identidade do SFP e, muitas vezes, colocando-o na lista de prioridades. Em terceiro lugar, o planejamento da formação docente e o desenvolvimento de currículos eram fracos, em parte por causa da baixa capacidade das equipes provinciais, que anteriormente eram responsáveis apenas pelo ensino básico. Quarto, nem todas as instituições públicas seguiram o mesmo currículo de SFP (mesmo dentro da mesma província), minando a validade das credenciais de ensino nacionalmente e limitando a mobilidade dos professores e, em alguns casos, até dos alunos.
Finalmente a reestruturação do ensino médio levou a uma realocação de professorxs para cursos e discentes para os quais eles não estavam preparados (ARGENTINA, 2000). Em algumas províncias, xs professorxs de ensino médio assumiram o ensino no último ano do básico; em outras, docentes de educação primária assumiram a responsabilidade do ensino médio. O descompasso na preparação criou um aumento na demanda por treinamento de professorxs em serviço (GALARZA; GONZÁLEZ, 1999). Entretanto, deixado para as decisões individuais dxs professorxs, o treinamento em serviço resultou em uma oferta desarticulada de cursos, em alguns casos sem resposta às necessidades das escolas e com capacidade limitada de promover melhorias nas práticas instrucionais (ARGENTINA, 1992).
No geral, a fraca capacidade técnica e financeira dos governos provinciais acrescentou mais desafios para abordar adequadamente a transferência em um período tão curto. O governo nacional se viu “sem escola” pela primeira vez desde as origens da educação pública e experimentando o modelo “governando a distância” (ROSE, 1990), o que exigiu forjar uma nova identidade e gerar o arcabouço institucional e normativo necessário para governar o recém-instituído sistema federal de formação docente.
As condições de trabalho dxs professorxs também pioraram nos anos 1990. Na esteira do novo século, os salários reais estavam no ponto mais baixo desde meados da década de 1970; eram inferiores aos salários médios e 24% inferiores aos salários médios da administração pública (GIACOMETTI; LUMI, 1995). Havia grandes disparidades salariais entre as províncias relacionadas a diferenças nas economias regionais e gastos com educação. Devido à falta de fundos, algumas administrações provinciais pararam de pagar xs professorxs (IÑIGUEZ, 1999; MAFFEI, 1997). A situação dos educadores não era única. As condições econômicas e políticas pioraram, atingindo um ponto de virada em dezembro de 2001, quando o governo federal entrou em um período altamente instável, com quatro mudanças de presidentes, a declaração de inadimplência do serviço da dívida externa da Argentina e numerosas restrições para a população acessar poupança e verificação de fundos.
Os primeiros anos do século XXI na Argentina devem ser entendidos como uma fase de transições traumáticas. Em 2001, todos os principais indicadores do bem- -estar do país deterioraram-se dramaticamente, com altos níveis de pobreza, desemprego, desnutrição, problemas relacionados à saúde e assim por diante. Durante esse período crítico, as escolas públicas, especialmente aquelas localizadas em áreas com alto índice de desemprego e níveis mais altos de pobreza, tornaram-se um refúgio para muitas crianças e suas famílias. De uma forma dramática, as escolas e xs professorxs mais uma vez foram encarregados de cuidar dos pobres e, em muitos casos, relegando a dimensão pedagógica a um lugar secundário, após a distribuição de alimentos e outros serviços de assistência social (ROBERT, 2012; ROBERT; MCENTARFER, 2014).
Em maio de 2003, um novo governo tomou posse (o presidente Néstor Kirchner, do Partido Justicialista), iniciando uma época de ruptura política de mudança de jogo. A economia se recuperou entre 2003 e 2005 e a inflação diminuiu, embora permanecesse ainda relativamente alta. O governo federal implementou pacotes importantes de assistência aos pobres e políticas econômicas que eram significativamente diferentes daqueles efetivados por governos anteriores, inaugurando uma nova estrutura para o entendimento do SFP. Isso levou, na educação, a uma avaliação das reformas dos anos 1990, a uma nova onda de reformas estruturais e à aprovação de novos regulamentos e planos nacionais que recuperariam o papel estratégico que a formação docente uma vez teve.
3.2 OUTRA ERA PARA O SFP DENTRO DE UMA NOVA ESTRUTURA DE GOVERNANÇA E POLÍTICAS NACIONAIS DO SFP PARA UM SISTEMA FEDERAL (2005-2015)
Em 2006, a Lei Nacional de Educação (Lei n. 26.206) introduziu uma reforma muito importante na estrutura do sistema de formação docente, a segunda desde suas origens, em 18709. Outras definições sobre governança, políticas, trabalho dxs professorxs e identidade também serviram para distinguir uma nova era para a formação docente. Como explicado anteriormente, a formação inicial de docentes originou-se nas Escolas Normais (nível secundário) e, em 1969, foi transferida para as instituições terciárias e não universitárias, com uma duração de dois anos. A Lei de 2006 estendeu o SFP inicial para a primeira infância e a educação primária de 2 a 4 anos e introduziu várias formas de residência pedagógica10 (ARGENTINA, 2006b).
A lei também reafirmou as metas e funções nacionais para a educação infantil e primária e reforçou a posição do SFP dentro do subsistema mais amplo do ensino superior. Os objetivos enfatizaram cinco aspectos de uma identidade recém-definida para o SFP: autonomia profissional, vínculo com a cultura e sociedade contemporâneas, trabalho em equipe, compromisso com a igualdade e confiança nas capacidades de aprendizagem dos alunos (artigo 71). Duas funções inovadoras do SFP enfatizadas na lei são o apoio pedagógico das escolas e a pesquisa em educação, além, é claro, das funções já estabelecidas de formação inicial e contínua de futuros professorxs em serviço (artigo 72).
As outras definições da Lei de 2006 incluem o estabelecimento de uma nova estrutura de governança para um sistema federal, delineando nove metas para uma política nacional de SFP e criando uma agência nacional de SFP. Em primeiro lugar, o SFP já havia sido descentralizado no início dos anos 1990, consolidando um sistema federal para a oferta de formação docente. No entanto, a falta de uma estrutura federal institucional resultou, como mencionado anteriormente, nos sistemas provinciais diversificados e na segmentação institucional do SFP, somando-se à falta de reconhecimento das credenciais de ensino nas províncias. A lei confiou a um órgão estadual federal (o CFCyE, renomeado como CFE) a realização de acordos sobre políticas e planos iniciais do SFP, diretrizes para a organização e administração do SFP, diretrizes de qualidade para padrões comuns e ações concretas que garantissem o direito de desenvolvimento profissional livre (artigo 74).
A nova estrutura de governança foi acompanhada, em segundo lugar, por nove diretrizes ou metas emergentes para uma política nacional para o SFP (artigo 73). A intencionalidade da política enfatizou: (a) a reformulação da formação docente como um elemento-chave para melhorias de qualidade; (b) o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades úteis para o ensino; (c) a promoção de pesquisa e inovação sobre ensino, experimentação e sistematização de lições para refletir e renovar práticas e instruções; (d) o fornecimento de opções e dispositivos variados para o desenvolvimento profissional; (e) a ênfase na articulação com as universidades para o desenvolvimento profissional; (f) o planejamento e desenvolvimento de um sistema nacional de formação inicial e continuada docente; (g) o credenciamento de instituições de formação docente, programas e trajetórias alternativas; (h) uma coordenação entre institutos de formação docente, universidades e outras instituições de pesquisa em educação; e (i) a concessão de validade nacional aos muitos tipos de credenciais de ensino. Em outra seção, a lei faz uma declaração explícita sobre a melhoria da qualidade da formação docente (artigo 85c)11. Para Pini e Gorostiaga (2009), alguns desses objetivos foram vistos como um salto qualitativo, desde que fossem implementados de forma colaborativa, envolvendo professorxs, alunxs e escolas.
Finalmente o estabelecimento de uma nova estrutura de governança e diretrizes para uma política nacional de SFP teve implicações práticas imediatas. A lei criou o Instituto Nacional de Formação de Docentes (INFD), uma agência do Ministério da Educação Nacional encarregada de planejar e implementar as diretrizes políticas do SFP, conforme acordado federalmente (artigo 76)12. Além disso, o INFD foi encarregado do monitoramento e avaliação da implementação da política; do desenvolvimento de planos de treinamento, currículo e até mesmo materiais do SFP; do implemento de um fundo de incentivo para desenvolver e fortalecer um sistema de formadores de docentes; e da promoção e desenvolvimento de pesquisas sobre SFP. O INFD foi incumbido da organização de reuniões federais para garantir a participação e consulta a autoridades provinciais de ensino superior para chegar a acordos técnicos sobre as políticas discutidas nas agências federais (artigo 139). O Ministério da Educação Nacional manteve o papel principal de desenvolver e implementar políticas para a avaliação da formação docente, presumivelmente através do INFD (artigo 85).
Nos parágrafos anteriores, descrevemos vários componentes das reformas em SFP introduzidas pela Lei de 2006. No entanto, a lei também regula outros aspectos que afetam indiretamente a formação docente, embora alguns deles já tenham sido instituídos em leis anteriores13. Uma das inovações mais importantes foi que, à luz dos muitos arranjos provinciais para a carreira docente típica dos anos 1990, a lei cobra de uma agência federal de educação o estabelecimento de uma estrutura nacional e comum para a carreira profissional14.
Outra inovação introduzida na Lei de 2006 pode ter afetado potencialmente a demanda por professorxs e indiretamente a formação docente – essas inovações foram realmente implementadas. Por exemplo, a lei pede que se alcance uma educação infantil universal a partir dos 4 anos (artigo 19), ela estende o dia primário de meio período para o dia inteiro (artigo 28) e torna o ensino médio obrigatório15. Além disso, a lei revisita as reformas estruturais introduzidas em 1993. Enfrentando a falta de coesão e fragmentação resultante da reforma anterior, ela reinstala a estrutura que tradicionalmente organizou o sistema educacional, revertendo o modelo de três ciclos da educação básica introduzido em 1993 (primário, secundário inferior e superior) a uma estrutura unificada de dois ciclos, primário e secundário. Isso asseguraria um arranjo coeso para um sistema federal, uma melhor articulação entre os níveis de educação e uma validade nacional para os diplomas emitidos pelas províncias (artigo 15).
Terigi (2016), uma conhecida e influente estudiosa no campo, identificou quatro etapas distintas durante o período de 12 anos do governo Kirchner: momento inicial de atendimento à crise do sistema educacional, período transitório marcado pela aprovação de uma Lei Nacional de Educação, instância firmada pela extensão da escolaridade obrigatória e a fase final focada na ideia de inclusão educacional. Terigi (2016) observa várias realizações do período Kirchner que merecem destaque, como a sanção das leis da Educação Profissional Técnica, a Garantia do Salário Didático e, em particular, o Financiamento Educacional (que foi projetado para investir em educação, ciência e tecnologia 6% do Produto Interno Bruto), além da criação do INFD e da implementação de programas como o FinE (Plano de Finalização de Estudos Primários e Secundários, uma alternativa para jovens e adultos terminarem primários ou secundários) ou Conectar Igualdade (a primeira iniciativa estadual para universalizar a incorporação das tecnologias da informação e comunicação no sistema escolar).
Perazza (2015), uma pesquisadora que também tinha experiência em formulação de políticas em nível nacional e estadual, também identificou como dívida educacional do período Kirchner a falta de atenção dada às tão necessárias regulamentações da carreira docente. A maioria das jurisdições segue o Estatuto do Professor (Lei n. 14.473), um padrão nacional adotado em 1958. Em resumo, os caminhos para xs professorxs aumentarem suas perspectivas, capacidades e reconhecimentos profissionais ainda são bastante estreitos e antiquados.
Em suma, as reformas introduzidas pela Lei de 2006 serviram para declarar o ensino como uma política de Estado, consolidaram o papel do governo como garantidor do direito à educação e implicitamente proclamaram o ensino como um bem público16. Desnecessário dizer que as mudanças no nível legal e político nunca são transferidas mecanicamente para escolas e salas de aula. Mas é importante reconhecer que talvez as principais definições regulatórias na Lei de Educação de 2006 sejam aquelas no nível do imaginário político-pedagógico, enfatizando, mais uma vez, o papel do governo federal na política de educação em comparação com as políticas de desregulamentação da década anterior.
Antes de concluir esta seção, é importante introduzirmos uma advertência. Como observado anteriormente, os partidos políticos ou coalizões que governaram a Argentina entre 1985 e 2015 oscilaram entre a aplicação de políticas neoliberais ou tentativas de consolidar o setor público. A Lei de 2006 foi implementada durante um período de um relativo alinhamento ideológico entre o governo federal e os sindicatos docentes (e supostamente as autoridades dos SFPs), que, no entanto, foi marcado por uma quantidade significativa de conflitos e greves. Dado o proeminente espaço financeiro, social e político que a educação pública tem no país, e não menos relevante tamanho dos sindicatos docentes (entre os maiores do país), não é surpreendente a centralidade do conflito em torno de professorxs e programas de formação docente durante esse período (PERAZZA; LEGARRALDE, 2008). Uma equipe que estuda a incidência de greves de professorxs no cenário político nacional concluiu que:
As greves na Argentina limitam-se principalmente ao setor educacional e praticamente são hegemonizadas pelo corpo docente das escolas públicas, mesmo após supostos aumentos salariais significativos e de promovidas leis de garantia mínima de dias mínimos de aula. Na Argentina, falar de greves é falar principalmente de greves em instituições educacionais. (NARODOWSKI; MOSCHETTI; ALEGRE, 2013, p. 6).
4 MUDANÇA NO PERFIL SOCIOECONÔMICO DOS ESTUDANTES DE EDUCAÇÃO DE PROFESSORXS
Na Argentina, como em vários outros países, muitas pessoas olham escolas e professorxs com nostalgia, e a escola de ontem sempre foi melhor do que a de hoje. O que é distintivo no caso argentino é a percepção de que não é a “qualidade pedagógica” (por exemplo, o quanto xs professorxs sabem ou o quão bem eles e elas são treinados/as) que mudou, mas o tipo de pessoas que escolhem se tornar professorxs. Em 2015, 491.405 alunos estavam matriculados em 1.248 institutos de formação docente, sendo 80% deles públicos (ARGENTINA, 2017). Para o ano de 2014, havia 957.275 professorxs nas escolas do país (ARGENTINA, 2015a).
De acordo com relatos da mídia e da perspectiva de alguns pesquisadores argentinos, a profissão docente parece estar tensionada por mudanças culturais; uma “descendência social” que aparentemente começou no final da década de 1970, acentuou-se nos anos 1990 e acredita-se que tenha atingido um ponto de “crise” em meados e final de 2010 (BELTRÁN, 2014). O processo é evidenciado, em parte, pelas aparentes mudanças na composição social dos alunos matriculados nos programas de doutorado e na adesão aos níveis de ensino. Três dimensões da “descendência social” são abordadas aqui: o histórico da turma e do status socioeconômico, a composição de gênero e trajetórias educacionais ou o histórico de capital humano dos estudantes e professorxs nomeados do SFP.
Primeiro, há a questão da classe, do histórico do status socioeconômico e do prestígio social de forma mais geral. Historiadores e sociólogos educacionais concordam que a composição social dos professores é agora diferente da que era historicamente. Enquanto alguns argumentam que a mistura social de aspirantes a professorxs tem se tornado cada vez mais homogênea (BIRGIN, 2000a; PINEAU; BIRGIN, 2009), outros afirmam que a mistura de professorxs nomeadxs de fato se tornou progressivamente mais heterogênea (DAVINI; ALLIAUD, 1995). Embora aparentemente contraditório, pode-se dizer que ambos os grupos apontam para os mesmos fenômenos: que a profissão docente tem sistematicamente perdido sua atratividade para grupos de classe média alta e que, portanto, professorxs aspirantes são de uma perspectiva de classe menos diversificada ou, do outro lado da mesma moeda, o ensino está ganhando atratividade entre os estudantes dos grupos da classe trabalhadora e xs professorxs estão se tornando mais heterogêneos social e economicamente e em seu capital cultural.
O ensino é um trabalho que historicamente tem baixa classificação em comparação com outros trabalhos profissionais que exigem um diploma universitário17 (BIRGIN, 1999). No entanto, em suas origens, a crença de que era uma ocupação honrada, cultivada e qualificada foi uma das razões a atrair mulheres jovens de famílias ricas (principalmente nas grandes cidades), que viam na formação docente e especialmente meninas um caminho legítimo e libertador dos papéis tradicionais das mulheres na sociedade (ALLIAUD, 1993a, 1993b)18. O fato de ser uma fonte de mobilidade social ascendente era outro elemento para a formação docente, persuadindo também outros grupos sociais, por exemplo, meninos e meninas das classes médias baixas (ALLIAUD, 1993a, 1993b; TEDESCO, 1986). Muitos puderam frequentar escolas secundárias de formação docente graças a bolsas de estudo do governo, particularmente na cidade de Buenos Aires (capital do país), e muitos outros compuseram a primeira geração da família a ingressar no ensino médio (BIRGIN, 2000b).
Apesar de algumas diferenças regionais na composição da classe social, os historiadores da educação concordam que uma das principais características comuns dos aspirantes a professorxs era que eles constituíam um grupo socialmente heterogêneo (ALLIAUD, 1993a, 1993b; BIRGIN, 1999; PINEAU; BIRGIN, 2009). Em linhas gerais, os programas de formação docente dos anos 1970 atraíram uma mistura de grupos sociais, incluindo estrangeiros, filhos de imigrantes e estudantes de classe média, bem como de famílias da classe trabalhadora. A formação de docentes desfrutava de uma imagem social um tanto alta, de respeito e reconhecimento simbólico entre os grupos sociais com baixo capital cultural e entre as mulheres ricas e cultivadas, apesar do fraco reconhecimento econômico. Meninos de famílias ricas, no entanto, preferiam as faixas do ensino secundário, levando a profissões liberais (ALLIAUD, 1993a, 1993b). O prestígio social da opção SFP da Escola Normal foi bastante baixo para eles.
Na segunda década do século XXI, o SFP ainda é visto como uma fonte de mobilidade social entre certos grupos, com uma alta proporção de estudantes de primeira geração entrando no sistema de ensino superior (BIRGIN, 2000b). Enquanto havia um século mulheres de classe média alta faziam parte dos programas de SFP como uma saída para papéis tradicionalmente restritivos, mudanças sociais, culturais, econômicas e políticas que abriram mais oportunidades profissionais para essas mulheres, o ensino para este grupo diminuiu claramente.
Como foi observado, o processo de declínio no prestígio do ensino e consequentemente dos programas de SFP foi um fenômeno que começou a adquirir mais visibilidade na mídia e foi pesquisado no final dos anos 1980 e continuou até o final dos anos 1990 (LLOMOVATTE, 1995). Um estudo do perfil dos alunos do SFP no início da década de 1990 mostrava que menos de 20% dos estagiários tinham pais que haviam terminado a universidade e entre 9% e 12% dos estagiários tinham pais profissionais (DAVINI; ALLIAU, 1995). Ainda assim, os estudantes do SFP eram proeminentemente oriundos da classe média e baixa, embora com uma tendência de mudança na inclusão de novos grupos sociais (BIRGIN, 2000b).
A pesquisa para os anos 2000 reforça as evidências sobre a nova configuração social de professorxs aspirantes. Com exceção da cidade de Buenos Aires, os pais de mais de 50% dos educandos do SFP nem sequer terminaram o ensino médio e uma amostra nacionalmente representativa mostra que cerca de metade dos estudantes estão em programas do SFP buscando oportunidades de mobilidade social, não mencionando ensino como sua opção “vocacional” (NOEL, 2010). De certa forma, o ensino parece ser apenas mais um trabalho, perdendo alguns de seus tradicionais marcadores sociais e culturais de uma profissão vocacional quase sagrada e determinada (FISCHMAN, 2000).
O status socioeconômico percebido de professorxs aspirantes é mais variado do que a formação educacional dos pais: pouco mais de um terço dos 3.091 entrevistados em uma amostra nacionalmente representativa de estudantes de SFP19 identificado como tendo um status socioeconômico alto e outro terço identificado como pertencente a uma classe trabalhadora. Grande parte do status socioeconômico alto percebido pode ser causado por estudantes de educação infantil e por estudantes da cidade de Buenos Aires, para quem a proporção daqueles que se identificam com um status socioeconômico alto é superior20. Por outro lado, a maioria dxs aspirantes a professorxs do ensino primário e secundário (via não universitária) percebe ter um baixo nível socioeconômico e, até certo ponto, o mesmo ocorre na parte norte do país.
Como mencionado, e contrariamente àqueles que examinam a composição social de aspirantes a professorxs, outros estudiosos destacam a crescente heterogeneidade do atual corpo docente como uma demonstração da “descendência social” da profissão. Donaire (2012b), por exemplo, argumenta que xs professorxs ainda são um grupo de classe média. Mas há uma representação mais elevada da classe média baixa, uma reflexão tanto da pauperização generalizada da classe média argentina que começou nos anos 1990 como do declínio dos salários dos professores (BIRGIN, 2000a, 2000b; BRASLAVSKY; BIRGIN, 1995; NARODOWSKI, 1990). O autor usa os dados do censo de 2001 e se concentra em professorxs casadxs, um pouco menos da metade de todas as mulheres21. Ele examina a adscrição social de cônjuges/ chefe de família a três diferentes grupos sociais: a grande burguesia, a pequena burguesia (incluindo a burguesia abastada e pobre) e o grupo operário ou proletário. O autor conclui que 54% das professoras pertencem a famílias de classe média ou pequena burguesia e 18% são de classe média pobre. O percentual de professorxs nas famílias de classe trabalhadora era de 38% em 2001, e a classe rica representava apenas 1,4% dxs professorxs casadxs.
É importante ressaltar que a falta de dados longitudinais ou históricos é uma limitação fundamental da pesquisa empírica disponível sobre o prestígio geral e a mudança da classe social ou experiência do status socioeconômico dxs alunxs e professorxs do SFP. Os estudos disponíveis têm uma visão transversal (BIRGIN, 2000a, 2000b; DAVINI; ALLIAUD, 1995; DONAIRE, 2012b; PINEAU; BIRGIN, 2009; RAZQUIN, 2004) e, embora defendam mudanças de tendências, suas descobertas reais retratam apenas uma imagem.
Desde a década de 1990, o Ministério da Educação Federal tem pesquisado professorxs em todo o país (dados do censo) para coletar informações sobre seu contexto sociodemográfico, entre outras características do emprego dos educadores. As constatações preliminares do censo de 2014 indicam que apenas menos de 15% do pessoal da escola (sala de aula e professorxs em outras funções, bem como outros funcionários também) têm pais que possuem mais de um grau de educação secundária (ARGENTINA, 2015a). As três rodadas de dados do censo não foram analisadas longitudinalmente. Dito isso, os dados de 2004 mostraram uma paisagem aparentemente similar: apenas uma média de 18% dos professores (dessa vez apenas professores em sala de aula) tinham pais que haviam concluído o ensino superior.
O gênero é outra dimensão relevante no perfil socioeconômico dxs alunxs e professorxs do SFP. Pesquisas indicam que isso mudou um pouco, embora, em geral, as mulheres ainda sejam a grande maioria (ARGENTINA, 2016). A formação docente sempre concentrou uma alta proporção de candidatas, mas, na última parte do século XIX, também recrutou meninos de classes médias baixas que buscavam um ensino secundário vocacional e um emprego estável. A proporção de estudantes mulheres nos institutos de formação docente aumentou ao longo dos anos, embora ainda existam variações regionais. Um estudo para a Grande Buenos Aires mostra que, em meados dos anos 1990, 90% dos aspirantes a professorxs eram mulheres (DAVINI; ALLIAUD, 1995). Pesquisas recentes retratam um quadro nacional um pouco mais variado: os estudantes de SFP são preponderantemente mulheres, mas em algumas regiões do país a proporção de estudantes do sexo masculino pode subir para 35% (NOEL, 2010).
Os dados da população e do censo ocupacional de 2001 mostram que pouco mais de 80% dxs professorxs são mulheres e que pouco menos da metade delas são casados (DONAIRE, 2012b). Os dados do censo de professorxs para 2014 dão 76% de professoras em todos os níveis, desde a primeira infância até o ensino médio, um percentual ligeiramente inferior ao das décadas anteriores, confirmado por estudos que analisaram pesquisas domiciliares de 2003 a 2011 (ARGENTINA, 2007, 2015a). Botinelli (2015) explica que o ligeiro decréscimo das professoras pode dever-se à expansão das matrículas no ensino secundário e superior, os dois níveis em que os homens estão mais representados.
Uma terceira e última questão na composição socioeconômica dxs professoxes aspirantes e praticantes é a trajetória educacional ou a formação do capital humano. Não há muita pesquisa sobre como xs professorxs aspirantes acadêmicos foram historicamente. Em um estudo sobre os primeiros institutos de formação docente no final de 1880 e início de 1900 (quando a formação docente para o ensino básico estava no ensino secundário), Alliaud (1993b) menciona que muitos alunos não passaram nos exames finais. O número de candidatos a professorxs com falha foi particularmente alto no primeiro e no terceiro anos, antes do quarto e quinto anos, em que o trabalho real para a credencial foi feito. Os alunos da escola primária tinham um capital cultural limitado na época, suficiente para embarcar no trabalho específico de ensino primário (ALLIAUD, 1993b).
Desde a década de 1990, vários estudos fornecem pistas para suspeitar que a formação docente pode não estar atraindo os melhores estudantes. Usando a pesquisa de desempenho dos estudantes de 2000 (aplicada em todo o país), em que estudantes do ensino médio foram questionados sobre suas expectativas para o futuro, Kisilevsky (2002) mostra que, quanto menor a pontuação do teste em Linguagem e Matemática, maior a expectativa de considerar ou não a formação docente de nível terciário, que na época eram muito mais curtos do que os graus universitários. A porcentagem daqueles que escolheriam opções mais curtas, como SFP, aumenta para os alunos que repetiram uma ou duas séries e é muito menor para aqueles que nunca repetiram. Kisilevsky (2002) também analisa os poucos trabalhos qualitativos publicados, todos com argumentos semelhantes: professorxs aspirantes têm deficiências culturais, pouca competência linguística, habilidades analíticas e de síntese mais baixas e não dominam os conceitos básicos da disciplina. Em um instituto de SFP em Bariloche, cidade em uma província do Sul da Argentina, 19% dxs professorxs entrantes foram admitidos condicionalmente até que eles aprovassem alguns cursos de ensino médio pendentes. Problemas de escrita e compreensão de leitura já foram documentados em um estudo de discentes de SFP na cidade de Buenos Aires (DAVINI; ALLIAUD, 1995).
Atualmente parece haver um consenso em torno da ideia de que a maioria dos educandos que ingressam nos programas de formação docente parece ter sido exposta a uma experiência escolar degradada e consequentemente chega aos estudos de nível superior com trajetórias educacionais empobrecidas. É importante ressaltar que não há dados para sustentar a ideia de que a trajetória educacional de aspirantes a professorxs melhorou ou piorou ao longo dos anos. Pineau e Birgin (2009) mostram um aumento de grupos oriundos da deterioração da escolaridade; segundo eles, apesar de as práticas culturais serem variadas, as práticas culturais dos alunos do SFP estavam longe das esperadas para ingressar na profissão docente. Nacionalmente 25% dos discentes do SFP têm problemas acadêmicos (NOEL, 2010).
Em suma, embora alguns estudiosos olhem para a representação dos mais ricos e outros para os grupos mais pobres no ensino, todos parecem apontar para a mesma descrição: a formação docente e ensino atraem principalmente grupos de classe média e pobres e seu prestígio está ligado à mobilidade social que promete para aqueles com menor capital humano e social. Os salários historicamente baixos, as más condições de trabalho e a relativa falta de prestígio profissional que tradicionalmente limitavam o ensino e o SFP revelaram traços persistentes, mesmo após as muitas mudanças na localização institucional da formação docente e do aparente aumento de salários que os docentes recebiam nos anos 2000. No entanto, algo parece ter mudado ao longo de um século e meio. A imagem social e o reconhecimento simbólico de que a profissão gozava parecem estar se desintegrando (BIRGIN, 2000a, 2000b; PINEAU; BIRGIN, 2009). A formação docente e as opções não universitárias de nível superior não são privilegiadas em comparação com os estudos universitários, havendo uma percepção generalizada de que os novos e chegados estudantes de formação docente estão inadequadamente preparados para as tarefas de ensino. Uma advertência é necessária: faltam análises intensivas e aprofundadas das amplas tendências na composição socioeconômica dos alunos de formação docente e também abordagens que pretendam aumentar nossa compreensão das possíveis forças que explicam o porquê e como se dão essas tendências.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, discutimos mudanças e continuidades no campo da Formação de Professorxs e representações socioculturais relacionadas ao status profissional dxs professorxs no período pós-ditatorial da Argentina. Em termos de continuidade, apesar de todas as mudanças legislativas, reorganizações institucionais, alterações orçamentárias, variações curriculares e greves aparentemente constantes no setor de educação pública, tomadas como um todo, o SFP parece ser muito resiliente e resistente a mudanças. As alterações propostas não alteraram o perfil institucional de longa data desse setor educacional específico. O SFP não mudou sua missão e estrutura ou o perfil dos candidatos que atrai para a profissão. Uma tendência similar pode ser usada para descrever a representação social sobre o status profissional dxs professorxs. Em outras palavras, os sistemas de formação docente e professorxs ocupam grande parte da atenção nos debates sobre educação nesse período, sendo focos de ação política e legislativa e de conflitos, mas as evidências empíricas sobre mudanças significativas permanecem incertas.
Essa falta de transformação substancial, apesar de muito esforço e atenção, é uma questão que requer mais pesquisas. Como argumentamos anteriormente, o ensino na Argentina não pode ser entendido sem considerá-lo como uma profissão de Estado, reconhecendo-se consequentemente o papel central do governo federal na definição, regulação, governança e gestão do SFP e da profissão docente. Como esperado, durante o período analisado, as relações entre o Estado, SFP e professorxs em geral flutuaram, dependendo do partido político ou da coalizão de partidos que liderava o governo federal. Quando os governos implementaram políticas orientadas para o neoliberalismo que enquadravam a educação pública como um gasto que precisava ser reduzido, professorxs, principalmente por meio de sindicatos, e programas de SFP mostraram muito capital político e capacidade institucional para resistirem a algumas das medidas mais drásticas e, em certa medida, mobilizarem a opinião pública, especialmente ao enquadrarem o conflito como uma defesa da “educação pública de boa qualidade”.
A resistência às mudanças, especialmente quando se percebeu que as mudanças diminuem a sempre evasiva noção de “publicidade” da educação pública, caracteriza a principal continuidade da profissão docente nesse período. No entanto, o estado quase permanente de conflito entre os sindicatos docentes e o governo, os debates políticos altamente visíveis e polarizados sobre a educação, juntamente com as mudanças demográficas reais e / ou imaginadas na composição social dos estudantes que frequentam o SFP parecem ter aumentado os níveis sociais de ceticismo sobre o sentimento de altruísmo dxs professorxs, consolidando já altos níveis de desconfiança sobre a especialização profissional dxs professorxs (BULLRICH, 2018; ROSEMBERG, 2018).
Mudar as percepções sociais sobre o profissionalismo dxs professorxs é talvez um dos maiores desafios para os docentes argentinos no sempre difícil caminho para uma melhoria substancial da educação pública. Para melhorar a posição profissional do ensino, é importante, mas não suficiente, continuar com as justas demandas por financiamento adequado da escola pública, educação de professorxs e políticas sociais para reduzir as desigualdades que afetam o desempenho dos alunos. Xs professorxs e os programas que educam os futuros educadores também precisam trabalhar com afinco, demonstrando, com suas ações pedagógicas diárias, a legitimidade de suas reivindicações de serem defensores do bem público.
RESUMO
Main Text
1 INTRODUÇÃO
2 BREVE HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DE DOCENTES E O LEGADO DOS TEMPOS AUTORITÁRIOS
3 FORMAÇÃO DE DOCENTES DESDE MEADOS DA DÉCADA DE 1980: MUDANÇAS E CONTINUIDADES
3.1 FORMAÇÃO DOCENTE EM TEMPOS NEOLIBERAIS (1989-2001)
3.2 OUTRA ERA PARA O SFP DENTRO DE UMA NOVA ESTRUTURA DE GOVERNANÇA E POLÍTICAS NACIONAIS DO SFP PARA UM SISTEMA FEDERAL (2005-2015)
4 MUDANÇA NO PERFIL SOCIOECONÔMICO DOS ESTUDANTES DE EDUCAÇÃO DE PROFESSORXS
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS