in Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Saberes dos professores regulares e especializados: legislação, medicalização e relações com a família na inclusão escolar
Resumo
O presente trabalho trata como tema central o desafio do processo de inclusão educacional. Este estudo busca analisar a percepção de docentes de Apoio Educacional Especializado e coordenação a respeito das práticas de inclusão na escola, levando-se em consideração o especialismo, o saber docente, o direito ao uso da sala de recursos no contexto da escola pública de um município na Grande SP. O método utilizado para realização da pesquisa de campo foi a pesquisa qualitativa, tendo como instrumento entrevistas semiestruturadas com a coordenação e professores AEE que atuam no ensino fundamental de uma escola pública municipal. A análise do material coletado em campo será feita a partir da análise de conteúdo, cotejando materiais do campo e do referencial teórico adotado pelos autores. Os resultados parciais indicam que o processo de inclusão escolar ainda é considerado difícil para os professores e coordenadores. Há necessidade de se discutir a escola democrática, o direito à educação, ações e políticas afirmativas em relação ao estudante PcD, além de temas como o diagnóstico das crianças, também a sistematização das políticas públicas e o envolvimento das famílias no processo de inclusão.
Main Text
1 Introdução
Diante da pressão de padrões sociais e educacionais vigentes, é comum observarmos queixas vindas de professores sobre “problemas de aprendizagem” e “problemas de comportamento” das crianças em idade escolar (EIDT; MARTINS, 2019). Nesse sentido, crianças com comportamentos considerados “diferentes” são, em sua maioria, diagnosticadas com problemas psíquicos ou orgânicos, o que as leva a um tratamento quase sempre medicamentoso. O termo medicalização é utilizado para se referir a uma tendência ou modo de encarar fenômenos multideterminados por circunstâncias sociais, culturais, políticas como se demandassem tratamento médico. Posto isso, “a medicalização não deve ser confundida com medicação, prática esta que remete à ministração e prescrição de medicamentos, nem com medicamentalização (o uso abusivo de medicamentos)” (MEIRA, 2019, p. 225).
A problemática que justifica nosso estudo é discutir na inclusão escolar as práticas e processos em que crianças são excluídas na (inclusão da) escola. A produção de um saber hiper especializado sobre a deficiência e os problemas de aprendizagem trazem o debate para a arena da formação de professores, em que percebemos que o saber legitimado como válido para explicar tais dificuldades é o saber lastreado por ciências que priorizam o orgânico e o biológico, sem se considerar condicionantes, fatores mais amplos e complexos, além dos marcadores sociais que afetam o modo de ser da criança e da família envolvidos.
Estetexto objetiva: mapear a percepção dos professores e coordenadores acerca dasestratégias de ensino-aprendizagem de alunos com deficiência e discutir arelação entre professores de salas regulares e especializados a partir do contatoe das práticas escolares e formação.
2 Metodologia
Apandemia do Covid-19 intensificou o trabalho da gestão e docentes (AEE ou desala regular). Ainda assim, o presente projeto aconteceu parte presencialmente,parte de forma remota, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética (CAAE nº:25103319.6.0000.5508). A pesquisa de campo através de entrevistas comprofessores regulares e AEE e gestora de uma escola de tempo integral na GrandeSão Paulo, entre 2020 e 2021. As entrevistas, feitas a partir de um roteirosemiestruturado, versavam sobre os objetivos do presente estudo.
3 Resultados e Discussão
Algunsexcertos das entrevistas realizadas com a coordenadora pedagógica e com duasprofessoras AEE serão apresentados dentro do contexto atual das políticasmunicipais de AEE, flexibilizadas em relação aos docentes e à periodicidade deatendimentos, o que prejudicou o acompanhamento que antes era feito pelospróprios professores da escola
Fica evidente a exclusão em relação a alguns alunos que, na visão dos professores e da gestão, precisam de atendimento na sala de recursos, porém não são seu “público alvo”, num entendimento equivocado da legislação sobre a inclusão escolar. Percebemos um discurso de impedimento sutil, em que alunos sem diagnóstico não são bem-vindos ao serviço, o que, nos dizeres de Fidalgo (2018), se constitui na “exclusão” dentro da “inclusão”, ou no que chamamos de in-exclusão (HASHIZUME, 2020).
Foram construídas categorias a partir de núcleos semânticos, que serão aqui brevemente anunciados e posteriormente discutidos. Tais categorias se inserem numa discussão mais ampla sobre direito à educação, saber docente e especialismo na educação inclusiva. A Categoria 1 fala da Visão sobre a Legislação e impactos para a prática inclusiva na escola. A Categoria 2 – Saberes dos professores regulares e especializados se relaciona ao núcleo semântico e aspectos relativos aos saberes e práticas dos professores de salas regulares e especializados a partir do contato entre eles, formação e condição de trabalho. Na categoria 3 – Relação escola e família: discutiremos a relação entre espaço público e relações privadas na família e representações entre família-escola. A categoria 4– Transtornos/Medicamentos e a deficiência reúne aspectos relativos a laudos, diagnósticos, judicialização e necessidade de garantia de direitos através desta. E, por fim, a categoria 5 – Visão da Gestão sobre as práticas e formação para a inclusão, remete ao núcleo semântico estratégico e mais amplo dos processos de inclusão, comparando-os às percepções e procedimentos adotados pelas AEE´s.
Na categoria 1 foi analisada a percepção dos professores e coordenadores sobre legislações vigentes e estratégias de ensino-aprendizagem com vistas ao desenvolvimento dos discentes. Abarca legislações como a LDB; Norma Técnica 04/2018, a LBI quando retoma a formação, condições de trabalho e estratégias usadas por professores AEE e de sala regular; além do Plano Nacional de Direitos Humanos, no que concerne ao acesso a uma educação de qualidade para alunos com deficiência. Indiretamente, a essa categoria também se somam questões relativas à legislação de proteção à saúde pública infantil, principalmente no que se refere a leis municipais que “instituem” práticas impeditivas da prescrição exagerada de medicamentos a crianças com comportamentos tidos como “inadequados”.
Arelaro (2017) discute a legislação e as formas de se incluir na escola ampliando a relação entre os direitos educacionais, políticas afirmativas e garantia de dignidade humana. Indiretamente, tais legislações garantem ações afirmativas. Nas entrevistas analisadas, alunos sem diagnóstico fechado tornam tais legislações inócuas, já que não são considerados beneficiários de sala de recursos. Nesse sentido, há uma preocupação em relação ao atendimento voltado a tais crianças que não podem ser atendidas nas salas de recursos, ao mesmo tempo em que nas salas regulares não são vistas como crianças que aprendem conforme as demais.
O atendimento das crianças nas salas de recursos e do Apoio AEE é garantido por documentos como a Nota Técnica 4 (2002), assim como o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2018), que garantem uma outra forma de inclusão, bem diferente da antiga integração, como descreve Fabris e Lopes (2016), modo este que convive com um discurso pretensamente inclusivo.
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (1996) traz avanços ainda não totalmente concretizados no que se refere à formação inclusiva. Além de considerar superdotados e portadores de necessidades especiais público da educação especial; situa a educação especial como modalidade de educação escolar; reiterando o ensino regular preferencialmente para todos os educandos; destacando o investimento necessário no currículo e na qualificação dos professores. Os depoimentos das professoras AEE revelam, ainda, defasagens nestes quesitos. Do mesmo modo, a inclusão social e cidadania preconizados pela Lei Brasileira da Inclusão da Pessoa com Deficiência (2015) devem se estender para as pessoas com deficiência.
Em relação à categoria 2, busca-se trazer à luz a relação entre os saberes e práticas dos professores de salas regulares e especializados a partir do contato entre eles no que se refere à formação e ao vínculo deles com a escola atendida. Os diferentes saberes e práticas dos professores AEE e os da sala regular se explicitam desde espacialmente, quando vemos que o professor AEE atua predominantemente na sala de recursos, até no modo como o seu conhecimento superespecializado em relação à deficiência se institui na escola.
No caso da escola estudada, há alunos com diferentes deficiências que necessitam, conforme prática adotada pela gestão da escola, de interação entre o conhecimento da professora especialista e a professora de sala regular em planejamentos coletivo e individual. Com as práticas de inclusão focadas na sala de recursos multifuncionais, o conhecimento que se constrói em sala regular infelizmente não é devidamente utilizado com vistas a promover a inclusão. O relato nas entrevistas explicita que as professoras especialistas atuem em duas frentes, quais sejam: o trabalho colaborativo e o trabalho de contraturno. No primeiro, a atuação se dá no horário de aula, seja reforçando o conteúdo já aprendido pela professora regular, seja trabalhando demandas específicas concernentes à deficiência do aluno. Pelos depoimentos, inferimos que as relações entre docentes (de sala regular e de recursos) se dão de forma pontual. Em geral, nas reuniões, os professores da sala regular consultam os especialistas pontualmente sobre como lidar com esta ou aquela dificuldade do aluno PcD.
Em que pese o cenário traçado, de forma sutil há o exercício de relações de poder entre os professores que lidam no cotidiano das práticas de inclusão. Vejamos neste excerto da entrevista da professora AEE:
O saber especializado sobre a deficiência é necessário para a educação inclusiva, assim como o conhecimento sobre as especialidades que o aluno com deficiência demanda. Porém, o que questionamos, a partir da Psicologia Escolar-Institucional, é o lugar de saber-poder que o conhecimento especializado ocupa, se sobrepondo ao conhecimento pedagógico do professor de sala de aula. Quando um conhecimento especializado se impõe como um saber superior comparado ao conhecimento do docente de sala regular, a educação inclusiva retrocede e, ao invés de promover a inclusão, promove uma competição de conhecimentos. O excerto nos faz inferir que a inclusão só aconteça com a participação do professor especialista.
A separação entre os conhecimentos específicos sobre a deficiência que prevalecem sobre o saber-fazer docente, que aqui chamaremos de especialismo se mostra, por exemplo, quando o professor relata não haver espaço para se trabalhar temas que ajudam a esclarecer estratégias e pressupostos para lidar com a diferença. O trabalho na sala regular também requer que sejam realizadas atividades com a turma toda, principalmente com os alunos que não apresentam deficiência, pois serão esses os responsáveis pelo acolhimento do colega com deficiência.
Para a coordenadora, é muito importante “[...] afirmar que a relação da escola com seus alunos pode tanto produzir ou agravar sofrimentos quanto ajudá-los a superar dificuldades” (MEIRA, 2019, p. 138.), principalmente em se tratando de uma escola pública, que deve cumprir o que preconiza a legislação brasileira.
Na categoria 3, na relação entre escola e família, percebemos que esta é responsabilizada de forma preponderante na recuperação da aprendizagem da criança, o que é evidenciado na entrevista feita com as professoras AEE. Nas entrevistas há referência ao compromisso dos pais em trazer as crianças duas vezes na semana para a estimulação na sala de recursos. A relação entre família e escola se mostra tensa e mediada pelo saber (conhecimento acadêmico/escolar e senso comum), interpretada pelos docentes e gestão como resistência ao tratamento. Tal “boicote” se daria, segundo as entrevistadas, usando-se diferentes justificativas como: questionamento do diagnóstico, falta de dinheiro para se deslocar, falta de tempo para acompanhar seus filhos.
Esse excerto mostra, em seu início, que pais não conseguem levar seus filhos ao tratamento que é orientado pelos docentes. Num segundo momento, apesar de se transferir aos responsáveis pelas crianças o cumprimento das atividades referentes ao tratamento da criança, percebe-se a admissão de que a carga horária a ser cumprida realmente é excessiva.
Com relação à Categoria 4, que trata de aspectos relacionados à medicalização, transtornos e deficiências e processos relativos a laudos, diagnósticos, judicialização de direitos dessas crianças. “À medicina se atribui todo o universo de relações do homem com a natureza e com outro homem, isto é, a vida” (MOYSÉS, 2008, p. 1), e com a aceitação da sociedade percebemos este discurso também presente no âmbito escolar. Nesse contexto, a medicalização é vista como método de combater anormalidades na sociedade, gerando desigualdades, patologia/psicopatologia, acompanhada de grande crescimento de diagnósticos/laudos.
Infelizmente tal jogo de poderes institui uma lógica médica pelo discurso da não necessidade de saberes educacionais, que devem ser substituídos por conhecimentos médicos (ANGELUCCI, 2014). Esse processo descrito por Meira (2019) afeta a vida dessas crianças e suas famílias, dos docentes e da gestão que lidam com elas no dia a dia. Isto é exemplificado na fala da coordenadora ao relatar uma breve situação sobre como a atribuição de grande valor a um laudo se sobrepõe ao parecer da escola sobre a aprendizagem do aluno não foi levado em consideração:
Aentrevistada questiona a forma como o diagnóstico é fechado, haja vista a nãocorrespondência entre o comportamento da criança e o que diz o laudo. De formacrítica a coordenadora demarca seu saber escolar, colocando em xeque o parecerque o médico apresentou à mãe.
O questionamento que a coordenadora levanta no seu depoimento está em acordo com um olhar de “que alunos tenham acesso a uma educação que respeite as suas especificidades, incluindo-os na sociedade como um todo”, sem, necessariamente serem categorizados como doentes (HASHIZUME, 2019, p. 134). Ao mesmo tempo, percebemos o excesso do uso de jargões médicos nos atendimentos das professoras AEE. Os enquadres nosológicos das patologias se misturam às características comportamentais das crianças. Infelizmente, seguindo tal lógica, a busca pela resolução dos problemas de aprendizagem dessa criança perpassa pela busca pelo diagnóstico, o que se explicita neste excerto da professora AEE:
Explicita-se um saber hiper especializado que corrobora o discurso da medicalização, em que o aluno precisa ser avaliado para que se conheça seu grau de gravidade de autismo. Após essa classificação, é como se a patologia pudesse ser enquadrada para posterior intervenção.
Por fim, a categoria 5, que trata da visão da Gestão sobre as práticas e formação para a inclusão se alicerça em norteadores da LDB (1996) e suas garantias didáticas diferenciadas aos alunos. Enquanto a coordenação ressalta a importância de espaços coletivos e individuais para a formação continuada dos docentes, da família dos alunos e das especialistas; as professoras AEE têm uma visão fragmentada da formação, tendendo a defender que ela seja feita de forma individual e instrutiva. Isso se deve, neste município, ao fato de que as professoras especialistas permanecem duas vezes na semana em cada escola, o que, segundo a coordenação pedagógica, afeta o acompanhamento ao aluno. Afeta também o vínculo entre professora, escola e família no trabalho de socialização, seja no aspecto técnico, seja no aspecto afetivo da aprendizagem.
Em se tratando da gestão educacional na educação inclusiva, sabemos que em escolas públicas, a gestão municipal acompanha de perto as ações dos docentes, dos professores AEE, das famílias e da coordenação e direção da escola. Nesse sentido, os objetivos das atividades, assim como a compreensão sobre o processo de formação continuada em serviço, esbarra na relação institucional do profissional, que, quanto mais dedicado àquela escola, melhor acompanha o processo de aprendizagem, seja das práticas educacionais inclusivas, seja das ações de cooperação entre docente de sala regular e sala de recursos.
4 Consideraçõesfinais
Em suma, a pesquisa ponderou os desafios que a escola vem enfrentando diariamente ao trabalhar a inclusão de crianças com deficiência. Os saberes especializados dos professores AEE competem com o saber-fazer docente dos professores da sala regular, numa colaboração “tensa” que revela conflitos e poder que circula nas relações. As legislações estudadas reforçam e estabelecem meios para que a inclusão ocorra através de ações e políticas públicas, que colaboram na garantia do direito à educação e saúde para crianças consideradas diferentes.
Outro ponto importante foi a formação continuada e a formação em serviço aliadas à visão estratégica da gestão, que através de tratativas no cotidiano escolar afetam significativamente o trabalho docente e a autonomia escolar. No processo de inclusão nas escolas voltada a estudantes com problemas de aprendizagem percebemos processos de exclusão, o que chamamos de in-exclusão. Portanto, entendemos e reforçamos a necessidade de ao invés de apenas criticar práticas inadequadas devermos ampliar as discussões sobre o tema visando construir novas práticas que sejam efetivamente inclusivas.
Resumo
Main Text
1 Introdução
2 Metodologia
3 Resultados e Discussão
4 Consideraçõesfinais