in Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Cinema africano e educação estética: estudo mitohermenêutico do filme Chikwembo
Resumo
O artigo mapeia a trajetória do ator e diretor negro Waldir Onofre (1934-2015), nascido em Itaguaí, Estado do Rio de Janeiro. Originário de família humilde, trabalhou desde criança: foi engraxate, chapista, serralheiro, ferreiro e técnico de rádio e televisão, ocupação que exerceu durante anos, inclusive quando já se dedicava às artes. Em 1953 começou a estudar interpretação e teve longa carreira como ator coadjuvante em cerca de 30 filmes, dirigiu um longa-metragem (As aventuras amorosas de um padeiro, 1975), que recebe análise mais detalhada no presente texto, 4 curtas-metragens e fez 3 assistências de direção. Trabalhou, dentre outros, com os diretores Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Paulo Thiago, Miguel Borges, Sérgio Rezende, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Bruno Barreto e Sylvio Back.
Main Text
Introdução
A experiência não está, portanto, na excepcionalidade, mas no que há de mais banal e repetitivo, isto é, no cotidiano. Em todos os setores, é a experiência a palavra-chave para explicar a relação que cada um estabelece com o grupo, a natureza, a vida em geral. Experiência que ignora escrúpulos racionais, repousando essencialmente no aspecto nebuloso do afeto, da emoção, da sintonia com o outro (MAFFESOLI, 2007, p. 203). A ampliação do campo da arte e da estética para setores cada vez mais amplos da sociedade minou o princípio moderno de uma arte voltada ao novo: “A prática artística está desterritorializada, para bem e para mal; isto é, para o exercício das singularidades ou para a efetuação da razão comunicativa, quando não para o oportunismo modista” (FAVARETTO, 2011, p. 105). Houve, portanto, um processo de deslocamento pelo qual a arte deixa de ser um atributo exclusivos das obras para se tornar uma arte de viver presenciada na estetização da vida cotidiana: lugares, cenas, acontecimentos: “Assim, o alargamento da experiência artística, interessada na transformação dos processos de arte em sensações de vida, permite que se pense na possibilidade de se fundar uma estética generalizada que dê conta das maneiras de viver, da arte de viver” (p. 108). Ora, essa dimensão estética da vida, que indissocia arte e atividades cotidianas sempre foi uma constante nas culturas africanas. O mito não está restrito a uma narrativa enclausurada nas folhas de um livro, mas é vivido cotidianamente, misturado aos elementos da vida moderna, que mesmo imposta aos povos africanos, não conseguiu apagar suas tradições culturais, suas ancestralidades, suas relações com o sobrenatural. É o que se observa nas manifestações do cinema africano. Embora o cinema seja uma forma de arte moderna e dependente da tecnologia, quando assimilada pelos africanos, transforma-se em veículo para circulação de sua cultura, de seus valores, de seu ethos. No que diz respeito à produção artística africana, é fundamental compreender sua dimensão estética, partindo inicialmente do reconhecimento do que é arte, o que vale também como critério de reconhecimento do caráter artístico das obras cinematográficas que são realizadas na África. A despeito das restrições de orçamento e recursos técnicos, é possível constatar, em filmes moçambicanos, por exemplo, uma preocupação com elementos que não se reduzem à experiência de resistência à opressão colonial, mas fazem circular valores como o mito, a cosmogonia, a espiritualidade, as diferenças sociais, a questão da sustentabilidade e de relacionamentos familiares, numa dimensão histórica e cultural mais ampliada. Desse modo, é preciso compreender que, historicamente, os europeus adentraram a África Austral munidos de uma visão de superioridade, pela qual justificou, não só a dominação territorial e econômica, como também o processo de imposição da religião cristã, por meio da conversão religiosa, tendo por base que a visão politeísta é uma idolatria a ser combatida. Os artefatos encontrados por meio das explorações arqueológicas foram considerados “ídolos”, com a finalidade de práticas consideradas pela cristandade como maléficas. Esse procedimento, de rebaixar a arte africana deslocando-a para o campo da “adoração espiritual” é um procedimento que até hoje não foi abandonado, principalmente quando as peças artísticas escapam aos cânones ocidentais. Assim, religiosidade e ideologia foram instrumentalizadas, durante cinco séculos, para dominação e controle dos povos subsaarianos colonizados. Nesse processo, não só a arte africana foi considerada inferior, mas também as demais manifestações de conhecimento, seja de cunho científico, filosófico ou de outra ordem.
2 Arte africana ancestral e cinema africano
A avaliação dos cinemas africanos tem mudado ao longo do tempo, desde ser considerado um produto de afirmação do colonizador, cinema de formas limitadas, alvo de sátiras, mostrando os africanos como exóticos e inumanos, até um cinema que merece integrar os grandes festivais mundiais. A maior parte da produção cinematográfica do continente africano carece de recursos financeiros, a exceção de África do Sul e Nigéria (no subsaariano), e de alguns países do norte e oeste da África de influência idiomática francesa, como o Mali e o Senegal. No caso de Burkina Faso, há uma idiossincrasia, pois este país pretendeu ser um dos polos desta arte no continente e direcionava para isso recursos vultosos dentro de sua capacidade. Indo para a África Austral, no caso de Moçambique, os parcos recursos financeiros vêm desde governos das províncias, bem como financiados por institutos europeus, como Goethe Institut, ou de grupos cristãos (porém, estes financiam produções de costumes, como cuidados na prevenção de doenças e consumo de drogas), como produções independentes do cinema contemporâneo cujos recursos são dos próprios cineastas. Um exemplo é o grupo Afromakers. Em uma live e em vídeos de entrevistas com os cineastas, é mostrada que há, para os mais de vinte e dois jovens cineastas e a equipe de produção, apenas uma máquina fotográfica que é usada no modo gravação, um computador de mesa para a produção, e grande quantidade de improviso, como armas feitas de papelão e microfones ambiente sustentados por cabos de vassoura, como está no vídeo de JJ Nota, um dos cineastas do grupo, intitulado “Como fazer um filme sem dinheiro”. Apesar dessas dificuldades monetárias, este grupo produz uma grande quantidade de curta e média metragens. Da mesma maneira que a arte escultórica africana era acusada de ser inferior devido às técnicas utilizadas não serem iguais às europeias, o cinema de Moçambique também sofre essa crítica indigesta, porém, com um olhar mais apurado e despido de preconceitos, as técnicas cinematográficas dos cinemas europeus e norte-americano estão presentes nos filmes, mas isto não é o essencial, não se assiste a um filme de Moçambique, do Benim, de Angola ou de Gana com esta régua de medição, é preciso despir-se das roupagens tecnográficas e produzir uma desconstrução estética em seu ser para adentrar esta seara; consideremos três passos: desconstrução, desencanto e reconstrução. A desconstrução é saber que os filmes africanos do subsaara, em sua maioria, tratarão de questões relacionadas à cultura desses países, o que torna o espectador um viajante (por isso, a mitohermêneutica faz-se presente). Ainda que seja possível fazer uma leitura cinematográfica com os conceitos conhecidos do cinema mundial (as técnicas e especialmente os cinco Cs da cinematografia), prender-se a fórmulas engajadas só nos fará perder parte, se não o todo do que será visto, por isso, o segundo passo é tão importante quanto este. Desencantar-se é retirar o encanto da estética, ou seja, descriar, fazer a mente e a compreensão criarem uma forma de ver a realidade a partir do ponto de vista daquelas pessoas (o ponto de vista do cineasta também traz consigo a forma de ver o mundo de sua população, à exceção daqueles que são formados em escolas europeias e tentam, a todo custo, produzir filmes com as fórmulas dessa grande escola de cinema). Peguemos, por exemplo, o curta metragem Tlhuka (de Gil de Oliveira), também do grupo Afromakers. Sem adentrar com profundidade na análise deste curta, que merece um artigo dedicado somente a ele, o que vemos. Um filme em preto e branco, duas mulheres como personagens principais (a mãe, cujo nome é Nothisso, e sua filha adolescente). O tom do preto e branco é mais escuro que o normal, e o filme é conto e poesia negro moçambicano em movimento, com trilha sonora que lembra os antigos rituais ronga, idioma falado no filme, que é um dos quarenta e três idiomas de Moçambique. Não se encontra ali nenhum efeito especial, embora se utilize o recurso de vários ângulos (vertical, horizontal, inclinado, transversal e a distância). Penetrar nos costumes dessa etnia levar-nos-á a uma outra compreensão da arte do cinema, do diálogo entre as várias artes (poesia, artes visuais, arte sonora, literatura). Daí poderá vir o encanto, outra maneira de ler o visível e o que não se vê. Desse movimento, inicia-se o terceiro. A reconstrução do olhar estético para com o cinema austral africano remete-nos a um conjunto de centenas de etnias, cujos filmes não são em grande parte falados na língua oficial e que, portanto, a questão do retorno financeiro não é o principal objetivo. O que temos é um olhar voltado para a cultura, a manutenção e transmissão dos costumes, sendo o cinema um veículo de perpetuação e resistência à cultura imposta pelo colonizador, portanto cumprindo uma função educativa. Logo, um cinema de resistência não precisa ser necessariamente o que produz filmes sobre as guerras de independência e as guerrilhas, mas formas sutis de rechaçar a opressão cultural. Tal qual a arte escultórica, que precisou ultrapassar os conceitos de arte saindo do campo do exotismo para uma arte original, o cinema africano também precisou deslocar-se de um cinema de paisagens e animais para um cinema de reflexão e imposição da palavra. Seu processo de assunção à categoria de arte demandou o reconhecimento de que integrava, aos moldes ocidentais, as demais artes, como preconizado por Canudo em sua definição clássica de cinema: o cinema se soma às artes tradicionais: arquitetura, música, pintura, escultura, poesia e dança. Ele é, ao mesmo tempo, a fusão das artes plásticas e das artes rítmicas, da Ciência e da Arte...ele deve desenvolver esta faculdade extraordinária e pungente de representar o imaterial. (apud AGEL, 1957, p.10) Ao formular esse conceito, Ricciotto Canudo, o primeiro a definir o cinema como sétima arte, buscou uma categoria universal que uniformizasse a produção cinematográfica, embora tenha visto apenas o cinema nascente em fins do século XIX e início do século XX. Gombrich considera que outas manifestações do pensamento diferentes da ocidental, como a do chamado “primitivo”, estariam subordinadas à mesma ideia de progresso, razão pela qual qualificava tanto o pensamento como as manifestações artísticas desse povo como infantil, pois mais próximas ao surgimento da humanidade; era uma forma de afirmar que tais sociedades, as “primitivas”, não possuíam arte, uma vez que “pinturas e esculturas são usadas para realizar trabalhos de magia”. Para Gombrich (1999, p. 20), é impossível entendermos esses estranhos começos se não procurarmos penetrar na mente dos povos primitivos e descobrir qual é o gênero de experiência que os faz pensar em imagens como algo poderoso para ser usado e não como algo bonito para contemplar. A interpretação da arte africana foi fortemente influenciada por Gombrich, que a via como manifestação próxima aos primórdios da humanidade, em contraste, portanto, com a arte greco-romana, considerada desenvolvida. Essa leitura positivista influenciou a maneira como o mundo ocidental também compreendeu o cinema subsaariano. Sob esse ponto de vista, a África, bem como os demais povos colonizados e subalternizados, representaria um “atraso” em relação ao Ocidente, identificando seus povos e suas produções ao estágio da infância, o que justificaria a tutela até sua emancipação, a ser atingida na vida adulta, quando então poderiam produzir verdadeiramente arte. Dado esse cenário, compreendemos que se abrem dois caminhos teóricos para a reflexão sobre a produção fílmica africana e, especialmente, o cinema moçambicano.
3 Linhas teóricas para a compreensão do cinema moçambicano
Para adentrarmos à complexidade do cinema de Moçambique, elegemos duas linhas teóricas que poderão contribuir para o ingresso nesse universo múltiplo: a teoria estética e a mitohermenêutica. A teoria estética trata do modo como a obra afeta os sentidos do observador, está ligada, portanto, à sensibilidade e entende que “a significação de uma obra não é importante para sua apreciação, a única coisa que conta é a forma como ela nos afeta” (EINSTEIN apud MUNANGA, 2004, p. 35). Essa teoria defende a ideia de uma capacidade mais democrática de leitura artística, sem a necessidade de mediações teóricas. Subjaz a noção de que, embora se reconheça diferenças interpretativas a partir das experiências formativas provenientes do contato com as manifestações culturais e, mesmo científicas, qualquer um pode usufruir esteticamente de uma obra. O enfoque, aqui, está no prazer que uma obra pode proporcionar. Há uma implicação importante derivada dessa teoria. Ao considerar a perspectiva da arte pela arte, colide com as interpretações que vinculam a arte negro-africana à religiosidade ou mesmo a outras dimensões da vida cotidiana, rejeitando qualquer perspectiva de funcionalidade. No entanto, para que a arte africana seja pensada na lógica da arte pela arte, seria necessário que penetrássemos na cultura desses povos para compreender conceitos estéticos como belo e feio, ou mesmo prazer estético. Instaura-se, desse modo, um impasse: de um lado, suprime-se a análise etnológica ou antropológica do campo da ciência, liberando a intepretação artística; de outro lado, se se reconhecem os conceitos estéticos entre os povos africanos, complica-se a entrada nesses mesmos conceitos sem as referidas ciências. A busca da superação desse dilema é oferecida por outra ciência, a linguística. Pela perspectiva linguística, foram pesquisados termos e palavras que contribuíssem para uma classificação da arte africana: belo, feio, ruim, maravilhoso etc. No entanto, mesmo com o aparecimento desses termos, o significado atribuído a eles não são necessariamente o mesmo que os conferidos pelo Ocidente. A alternativa para esses impasses surge com a proposta de uma reeducação artística, pela qual o mais importante é a forma. Segundo Munanga (2004, p. 36), “pouco importa que o objeto fosse feito para um determinado culto. Para a teoria estética, o objeto deve ser olhado por si mesmo, sendo o essencial apenas o aperfeiçoamento de sua forma.” Tendo isso em vista, e para que possamos avançar no conhecimento da produção cinematográfica africana e sua relação com o conceito de estética, mitologia, arte e cultura destes povos, como uma maneira de educação não formal, adotaremos uma perspectiva mitohermenêutica (FERREIRA-SANTOS, 2008). A mitohermenêutica ou hermenêutica simbólica, na perspectiva da educação, situa como ponto de partida e chegada da jornada interpretativa a compreensão de si. Não se trata – é importante frisar – de aplicar uma técnica de interpretação, mas entender que o hermeneuta, em sua jornada interpretativa, instala-se na paisagem cultural das obras investigadas, penetra em seu interior e reconstrói os sentidos de tal imersão (FERREIRA-SANTOS, 2008, p. 4). Compreender um filme é compreender-se a si mesmo. Nessa perspectiva, há um diálogo constante com as obras em estudo, bem como com os contextos nos quais foram produzidas, para que os sentidos possíveis sejam levantados e confrontados a partir da própria rede de relações da qual faz parte. Nessa abordagem, a recorrência simbólica é um elemento central, pois é a redundância de elementos simbólicos que possibilitará sua interpretação e compreensão. De acordo com Gilbert Durand (1988, p. 19), o símbolo é um signo que remete a um indizível e invisível significado, sendo assim obrigado a encarnar concretamente essa adequação que lhe escapa, pelo jogo das redundâncias míticas, rituais, iconográficas que corrigem e completam inesgotavelmente a inadequação (DURAND, 1988, p. 19). A recorrência simbólica é que permite a inferência do(s) sentido(s). "Não que um único símbolo não seja tão significativo como todos os outros, mas o conjunto de todos os símbolos sobre um tema esclarece os símbolos, uns através de outros, acrescenta-lhes um 'poder' simbólico suplementar" (DURAND, 1988, p. 17). Na obra selecionada para este artigo, buscaremos essas recorrências para melhor compreender não apenas o filme em questão como também a cultura moçambicana e, mais especificamente, a etnia nele envolvida.
4 Chikwembo – o filme
Chikwembo é um filme produzido em 2009 pelo cineasta Júlio Silva, o idioma do filme é o changane, com legendas em português. Chikwembo é traduzido como feitiço. A obra é dividida em duas partes: a primeira chama-se Chikwembo e a segunda, O Regresso do Espírito. A primeira parte do filme inicia-se com imagens da Reserva do Banhine, que é descrito geograficamente para que o espectador possa saber onde ele fica dentro do mapa de Moçambique. Após imagens de uma região ainda habitada por animais selvagens, há um corte para uma jovem que está peneirando farinha, seu celular toca e começa um diálogo, é seu noivo que, sem motivo aparente, comunica que a está deixando. Ela, Catarina, sem entender o que está acontecendo, disse, entre outras coisas, que ele, de nome Langa, foi enfeitiçado por uma “rapariga” da cidade. Embora uma das características do cinema africano seja a dicotomia entre cidade e interior rural, ainda é cedo para chegarmos a esta conclusão, pode ser que tal antagonismo seja simbólico. O filme é realizado com atores amadores e moradores da região (em sua maioria), por isso, ao assistirmos Chikwembo, faz-se necessário despirmo-nos das análises clássicas de filme de ator, ou seja, aquela crítica que projeta sobre as atuações o peso de toda a obra, daí já vemos que o cinema de Moçambique escapa e sugere que o acompanhemos por um viés inteiramente outro, onde os cânones ocidentais não alcançam. Essa parte inicial, do rompimento da relação, termina com a cena em que Catarina, após uma crise de choro, caminha com um galão de água sobre a cabeça, numa estrada de terra em meio a um matagal. Na sequência, Langa desembarca da carroceria de uma caminhonete que servia como meio de transporte para várias pessoas, e é imediatamente reconhecido pela própria Catarina e por uma amiga sua. Langa agora está com outra mulher. Ele é indiferente às lagrimas de Catarina. O diretor usa o enquadramento fechado nesta cena, para permitir que o espectador observe, em detalhe, a expressão do rosto das personagens. A cena parte do enquadramento aberto para o fechado, denotando um momento de tensão. Langa apresenta Rosa, sua nova namorada, para a família; seu irmão o afasta da comemoração, o chama para um canto e o alerta para o perigo da volta da tristeza que ele causou a Catarina, ele ignora o perigo. Qual perigo? O perigo da vingança por feitiço. Catarina volta para casa chorando, põe-se aos pés de sua mãe que toma suas dores e promete vingança: vai atrás de uma amiga que lhe apresenta um feiticeiro. Inicia-se a segunda parte da história ainda dentro do primeiro filme. Esse ponto de tensão é importante porque uma das justificativas da colonização era impor o cristianismo a todos os povos africanos dominados, uma vez que precisavam ser salvos das práticas maléficas. Cristianismo histórico e positivismo dialogam no sentido de acreditarem num estágio evolutivo da humanidade. Os africanos, durante muito tempo, foram tratados como crianças que precisavam de um pai a guiá-los. Também se faz importante narrar este acontecimento que produz um corte na história, direcionando-a para outro rumo, porque demonstra que as práticas ancestrais dos povos africanos, a que muitos chamam de bruxaria ou animismo, continuaram a ser praticadas e continuam apesar de mais de cinco séculos de opressão católica (no caso das colônias portuguesas). Lembrando Nietsche que diz que onde houver repressão dos sentidos, surge a resistência, a opressão da religião do colonizador não foi tão eficaz a ponto de anular e extinguir por completo as manifestações espirituais da África Austral e, nesse caso, de Moçambique. Chikwembo opõe-se ao conceito de magia em Durkhein, pois para este “embora as práticas mágicas sejam suficientemente difundidas no seio de um grupo social, elas diferem substancialmente da religião, pelo fato de não terem a função de promover a unidade e a identidade entre os membros de um grupo” (DURKHEIN apud WEISS, 2012, p. 11). Nesse caso, como as práticas espirituais são uma característica daquele grupo, elas promovem a identificação entre seus membros, já que, culturalmente, eles reconhecem-na como parte de sua vida. No decorrer do filme, o irmão de Langa ao ouvir o som dos cantos e tambores, comemora, pois diz que as mães curandeiras estão felizes, e esta é a tradição: o canto, a dança e os instrumentos, esta tradição, continua ele, toca fundo o coração e faz com que se reconheçam. Segue-se aí uma longa sequência de canto e dança tradicional da região de Gaza. Rosa, ao ir tomar banho, é picada por uma cobra e desaparece, no que os habitantes dizem que este acontecimento é fruto de magia; a família de Langa, em desespero, procura uma sacerdotisa para esclarecer a dúvida e responder se Rosa está viva. No decorrer desta primeira parte do filme, Rosa é localizada num esconderijo de um feiticeiro, Langa e seu irmão a localizam, a resgatam e a trazem para casa, mas o conflito ainda continua. O diretor faz a opção por colocar pequenos obstáculos no caminho da volta, que dificultam ainda mais o caminho, Langa não crê que tudo isso seja fruto de magia. Lembrando a estrutura do mito, em que o herói aceita o desafio e retorna com o objetivo concretizado (o resgate de uma pessoa, a localização da pedra filosofal, a vitória sobre inimigos reais ou imaginários), Langa passa pelo vale dos leões e dos elefantes em direção à aldeia, enquanto o diretor faz uso de uma música instrumental de mistério, que dá abertura para um canto gutural tribal, em língua changane. A primeira parte termina dessa forma, com Langa retornando a Maputo com Rosa, abandonando de vez Catarina. O diretor opta por começar a segunda parte com o mesmo canto identitário que finalizou o primeiro, agora com o irmão de Langa (de nome Mavanga), falando que se casou com Catarina, atitude esta que é reprovada pela sua mãe, que acusa Langa de ingratidão. A oposição campo-cidade aqui é mais evidente, uma vez que este diálogo ocorre enquanto mãe e filho capinam a terra. A mãe de Langa fica doente, adoece e, momentaneamente, torna-se incapaz para o trabalho, Langa retorna de Maputo e a trilha sonora prepara-nos para um novo conflito, agora de ordem familiar: Langa contra seu irmão que desposou Catarina. Há dois momentos seguintes do filme que merecem atenção: a opção do diretor de fotografia pelos planos abertos e fechados. Langa, quando vai embora da casa de seu irmão após a discussão, é filmado num plano aberto, com ele em uma grande floresta. Essa opção de plano permite-nos ver o homem menor se comparado à grandeza da natureza, depois o plano vai-se fechando na medida em que o personagem adentra a floresta, fecha-se tanto que o faz entrar em contato com um sacerdote da magia, conhecido por sua aparência rude e por ter suas cores. A dicotomia das cores remonta-nos ao claro e ao escuro, algo um tanto indefinido e irreal, inumano portanto. Langa entra em discussão com este homem que promete vingança. O plano abre e há um corte para a cena seguinte. Uma anciã, cujo rosto está novamente em plano fechado, ensina aos jovens (homens e mulheres) como se prepara a bebida de canhô. Em detalhes, o sumo de canhô é descrito, preparado e apreciado por todos, inclusive por Langa que, bebendo, revela ter entrado em contato com este homem na floresta. Logo em seguida passa mal e é levado a uma casa onde uma anciã poderá resolver a questão. A música ao fundo novamente coloca-nos num ponto de tensão a ser solucionado. Julio Silva, o cineasta, ao dirigir atores amadores e moradores locais, remonta-nos aos primórdios do cinema, na sua estreita ligação com o teatro. Agel (1957) diz que “o cinema designa o aspecto poético das coisas e dos seres, suscetível de ser revelado pelo novo meio de expressão” (p. 11). E continua: “os elementos fundamentais dessa escritura (o cinema arte poética) são quatro: a cenografia, a luz, a cadência (isto é, o ritmo da história) e a máscara (o ator e os intérpretes) destes elementos, o último é que merece destaque”. Nesse caso, a opção por filmar com moradores locais, com gestos teatralizados (no caso, o ser indefinido da floresta ou feiticeiro), até com gestos naturais (a maioria age como se não estivesse sendo filmados, principalmente as mulheres no filme que são mais naturais nos gestos, nas indignações e nas sensações), Silva rompe com um cânone do cinema propagado por Dulac que diz que a produção fílmica só se faz com atores profissionais, caso contrário, não é cinema (in AGEL, 1957, p. 12). O cinema e a música em conjunto, por si, podem provocar o drama, o movimento também aqui se faz e ele é elemento fundamental em Chikwembo. Não há fixidez, há idas e vindas na busca de soluções, o que gera conflito, movimento, tensão e faz desenrolar a história. Longe da cidade grande e desenvolvida, (Maputo), esta aldeia de Gaza foge de regras racionais e segue as suas próprias tradições. A ida de Langa para Maputo fez com que ele se sentisse “moderno”, desacreditando das tradições; ao ter problemas, muitos dos quais gerados por ele, retorna à aldeia em Gaza onde é obrigado a moldar-se ou remoldar-se às tradições, sentindo-se menor diante de tudo, por isso o plano sequência aberto e depois fechado quando há o conflito, e mais fechado ainda (em close up) nas falas dos personagens, pois é nos olhos que vemos o caminho a ser percorrido. O crítico israelense cristão René Schwob afirma que “é nas raízes do ser, no ponto de tangência de nosso ser mais secreto, mais ignorado de nós mesmos e aquele que mais nos deleita, que o cinema nos faz enfim, descer... à mais prodigiosa sondagem no turvo infinito que trazemos em nós” (apud AGEL, 1957, p. 16). Gaza, a região onde se passa a história, tem uma ocupação muito antiga com registros históricos que comprovam que lá já havia reinos e sociedades estruturadas antes da chegada dos portugueses: Muito antes de aí haver quaisquer sul-africanos brancos, os bantos tinham na realidade ocupado as únicas partes do subcontinente com um clima e pluviosidade adequados à agricultura intensiva. Haviam deixado o alto e seco Karoo do planalto central. (OLIVER e FAGE apud SANTOS, 2007, p. 30). Historicamente, o Império de Gaza era fortemente estruturado e preparado para o combate, com um preparo militar relatado por viajantes. Em sua pesquisa de doutorado, Santana diz-nos que A força militar desse império era formada por uma pluralidade de regimentos, os quais eram constantemente renovados e treinados para a realização de razias nas povoações que ainda não se encontravam sob o domínio Nguni ou para guerras de proporções maiores, como foi a de 1895-1897 contra os portugueses. Cada regimento se destacava por suas formas de vestir, suas danças e cantos guerreiros, que eram utilizados como parte das cerimônias destinadas à preparação moral e religiosa dos soldados, de modo a instigar-lhes autoconfiança em sua capacidade guerreira e a certeza da vitória. (SANTANA, 2016, p. 5) Numa sequência de um novo romance de Langa, agora com uma moça chamada Carolina, ele vai até a casa onde reside esta moça e a procura (onde ele havia acompanhado-a no dia anterior), no que é atendido de forma bastante rude pela mãe da moça que lhe diz que Carolina já morrera há muito tempo. Embora não seja o objetivo deste estudo analisar a utilização das cores no filme, mesmo sabendo que ela é um importantíssimo elemento da mise-en-scène, ou seja, tudo o que compõe a cena, a cor branca da roupa de Carolina merece destaque. Entre a maioria dos povos africanos subsaarianos (entre os bantos e o tronco linguístico congo-níger, o que inclui os yoruba), a cor branca é associada ao mundo não material. Muitos chamam de mundo dos mortos, porém, esta nomenclatura não tem correspondência na maioria das culturas africanas, uma vez que há diversos tipos de morte, e não somente a morte física como para os ocidentais. A cor branca está ligada ao estado não físico da morte, à entrada no mundo dos mortos, uma vez que ela é a ausência das cores, conforme diálogo no filme sul-africano Incheba, em que um ancião explica aos jovens iniciados porque eles são pintados de branco. Essa perda de noção e de consciência que confunde Langa leva-nos também a uma perda de entendimento do que pode ocorrer, por isso a teoria estética permite-nos a compreensão de outra cultura pelo seu próprio viés. Então temos aí vários micro-conflitos que Langa enfrenta no percurso de sua existência, tanto entre as existências visíveis como as invisíveis, obrigando-o a retornar, em seu ser, à sua cultura que deixara de lado sob a alegação de uma suposta maturidade dada pela convivência na grande cidade. Por baixo e por dentro da existência de Langa, os conflitos cumprem aquilo que Heidegger (1997) chama de “volta para casa” para habitar poeticamente as coisas, isto é, significa estar na presença dos deuses e ser tocado pela proximidade essencial das coisas.
5 Considerações finais
Ao optar por colocar vários elementos estilísticos ao filme, o diretor Júlio Silva contrapõe-se aos ditames do que conhecemos como cinema do ocidente, ou seja, ele opta por colocar moradores locais como atores, busca a essência das tradições espirituais, faz valorizar a música, a dança e os frutos do lugar, faz convergir ética e estética com a dimensão do cotidiano, valoriza a oralidade, traço marcante das culturas africanas e, principalmente, exclui a língua portuguesa (a língua do colonizador), como elemento fundamental da obra, amplificando o caráter educativo de seu cinema, ao priorizar sua própria cultura. Colocando o africano na tela, na frente das câmeras e atrás dela, com sua reduzida equipe de produção, o diretor faz não somente uma afirmação estilística, mas acima de tudo, uma afirmação política, a saber: que é a busca de escolonização da mente: o ato da produção, a disponibilidade, a quantidade, a essência do cinema africano, por assim dizer, é, sem dúvida, o pré-requisito mais óbvio. É necessário que existam filmes feitos por africanos sob a condição africana, antes que se possa falar sobre o cinema africano. Os recursos para a produção de filmes, sua distribuição e acessibilidade ao público africano são fatores indispensáveis para a existência de uma cinematografia. (WA THIONGO’, 2007, p. 27). Ao nos dispormos a assistir a um filme africano, especialmente de países cujos financiamentos são rarefeitos (Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Gabão, Benin, República Centro Africana, Zâmbia, Burundi, Etiópia entre outros), precisamos preparar nosso espírito para adentrarmos um universo cuja produção fílmica remete-nos, muitas vezes, aos primórdios do cinema, sem grandes efeitos especiais ou locações riquíssimas, ou carros de alto custo ou figurinos que poderiam estar nas passarelas europeias. O cinema africano, especialmente feito por africanos e para o público africano, embora possa e deva circular para outros públicos, como o brasileiro, por conta da origem de seu povo, tem um posicionamento de valorizar sua cultura, suas tradições e enfrentar os dilemas do cinema, formulando regras próprias, tentando a todo momento fugir da interpretação limitada e triádica de conflito entre tradição e modernidade, animais selvagens e magia. Ainda que estes elementos estejam presentes em boa parte das produções, as leituras sobre eles e seus significados é que precisam mudar. Estes são elementos fundantes dos costumes, como o diálogo entre homem e natureza, natureza e cultura, produção de bens de consumo e sustentabilidade, dinheiro e sacralização, entre tantos outros temas. Nesse sentido, identificamos uma dimensão educativa no cinema africano, a qual está associada aos fundamentos educativos do cinema (ALMEIDA, 2017), principalmente no que diz respeito aos fundamentos antropológico e mítico, pelos quais se observa o papel do cinema na ampliação do conhecimento sobre outras culturas, inclusive as mais descentradas, possibilitando também a valorização de grupos minoritários, no modo como vivenciam suas contradições e posicionam-se eticamente. No caso do cinema africano, o fundamento mítico mostra-se presente não apenas na menção direta aos mitos, mas sobretudo por cumprir a função de reconciliar nossa consciência com o mistério do universo, oferecer uma imagem interpretativa desse mistério, além de impor uma ordem moral e auxiliar o indivíduo na busca de uma congruência com a cultura de seu povo e sua existência particular. Há, portanto, o que Celso Luiz Prudente (2021) observa como uma dimensão pedagógica do cinema negro, pela qual a imagem do negro, seja africano ou afrodescendente, é afirmada, pois “ensina à sociedade a maneira como ela deve ser tratada, ajudando na superação do seu anacronismo excludente” (p. 15). Ainda que Chikwembo contenha esses elementos, ele convida-nos para um olhar mais aprofundado não somente sobre o que estamos vendo, mas principalmente sobre o que não está explicito na tela como elemento principal, mas espalhado umbilicalmente entre os povos africanos, qual seja: a resistência em manter-se vivo culturalmente, mesmo que para isso tenha que pagar um preço, que é o de percorrer caminhos já imaginados pela indústria cinematográfica. Manter viva a sua cultura, oralidade e espiritualidade é uma continuação das diversas guerras de independências e guerras de guerrilhas a que muitos desses países passaram e, por extensão, manterem-se vivos cultural e espiritualmente como seus diversos descendentes o fazem espalhados pelos diversos lugares do mundo pós-diáspora negra.
Resumo
Main Text
Introdução
2 Arte africana ancestral e cinema africano
3 Linhas teóricas para a compreensão do cinema moçambicano
4 Chikwembo – o filme
5 Considerações finais