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O LUGAR EM DISPUTA: VIVÊNCIAS, PERCEPÇÕES E IDENTIDADE A PARTIR DAS RELAÇÕES TERRITORIAIS NO ASSENTAMENTO SANTANA/MS
THE PLACE IN DISPUTE: EXPERIENCES, PERCEPTIONS AND IDENTITY FROM TERRITORIAL RELATIONS IN THE SANTANA SETTLEMENT, MUNICIPALITY OF BRASILÂNDIA – MS
EL LUGAR EN DISPUTA: EXPERIENCIAS, PERCEPCIONES E IDENTIDAD DESDE LAS RELACIONES TERRITORIALES EN EL ASENTAMIENTO SANTANA, MUNICIPIO DE BRASILÂNDIA - MS
Revista GeoUECE, vol.. 10, núm. 18, 2021
Universidade Estadual do Ceará

Artigos

Revista GeoUECE
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
ISSN: 2317-028X
ISSN-e: 2317-028X
Periodicidade: Semestral
vol. 10, núm. 18, 2021


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo evidenciar o processo histórico e territorial que culminou na desterritorialização de comunidades ribeirinhas pela chegada da Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta no município de Brasilândia, estado do Mato Grosso do Sul. Para alcançar o objetivo alvitrado, utilizamos o levantamento bibliográfico, a pesquisa documental e as entrevistas semiestruturadas com três pessoas no Assentamento Santana, local da reterritorialização das comunidades ribeirinhas que foram atingidas pela chegada da Usina. A partir do exposto, realizou-se uma discussão em torno do processo de desterritorialização e reterritorialização, nas mudanças e problemáticas que surgiram a partir destes eventos, construiu-se uma leitura e discussão em torno do conceito de lugar, por meio da perspectiva da geografia crítica e de pertencimento em relação a todos esses conflitos históricos, políticos e sociais materializados na área de estudo. Observou-se que as relações estabelecidas entre o sujeito e o lugar foram prejudicadas pelo processo de desterritorialização marcado pela chegada da Usina Hidrelétrica; as perdas se estabelecem e se dão no território material e imaterial.

Palavras-chave: Usina Hidrelétrica, Lugar, Desterritorialização, Reterritorialização.

Abstract: This article aims to highlight the historical and territorial process that culminated in the deterritorialization of riverside communities by the arrival of the Engenheiro Sérgio Motta Hydroelectric Power Plant in the municipality of Brasilândia, state of Mato Grosso do Sul. To achieve the objective, we used: bibliographic survey, documentary research and semi-structured interviews with three people in the Santana Settlement, site of the reterritorialization of riverside communities that were affected by the arrival of the Plant. From the above, a discussion was held about the process of deterritorialization and reterritorialization, in the changes and problems that arose from these events, a reading and discussion was built around the concept of place, through the perspective of critical geography and belonging in relation to all these historical, political and social conflicts materialized in the area of study. It was observed that the relations established between the subject and the place were impaired by the deterritorialization process marked by the arrival of the Hydroelectric Power Plant; losses are established and take place in material and immaterial territory.

Keywords: Hydroelectric Power Plant, Place, Deterritorialization, Reterritorialization.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo destacar el proceso histórico y territorial que culminó en la desterritorialización de las comunidades ribereñas por la llegada de la Central Hidroeléctrica Engenheiro Sérgio Motta al municipio de Brasilândia, estado de Mato Grosso do Sul. Para lograr el objetivo, se utilizó: levantamiento bibliográfico, investigación documental y entrevistas semiestructuradas con tres personas en el Asentamiento Santana, sitio de la reterritorialización de comunidades ribereñas que fueron afectadas por la llegada de la Planta. A partir de lo anterior, se realizó una discusión sobre el proceso de desterritorialización y reterritorialización, en los cambios y problemas que surgieron de estos eventos, se construyó una lectura y discusión en torno al concepto de lugar, a través de la perspectiva de geografía crítica y pertenencia en relación a todos estos conflictos históricos, políticos y sociales materializados en el área de estudio. Se observó que las relaciones establecidas entre el sujeto y el lugar se vieron perjudicadas por el proceso de desterritorialización marcado por la llegada de la Central Hidroeléctrica; las pérdidas se establecen y tienen lugar en territorio material e inmaterial.

Palabras clave: Central Hidroeléctrica, Lugar, Desterritorialización, Reterritorialización.

1. INTRODUÇÃO

[...] Não sei o que é humano

E o que é máquina,

Num instante a máquina foi humanizada,

E o humano?

Esse rompe fronteiras,

Destrói e constrói lugares,

Lugares que (re)existem,

Até mesmo ao mar do Paraná

(Fragmento do poema “Que lugar é esse?”)

Os autores

Em uma constante busca e reflexão em torno de temas que, possivelmente, poderiam ser trabalhados por meio da imersão em um contexto marcado por múltiplas trajetórias e vivências, identificou-se no conceito de lugar uma enorme potencialidade que será melhor desenvolvida nas páginas seguintes, buscando relacionar o conhecimento científico e o desenvolvimento e aprimoramento de conceitos com as práticas sociais, culturais e econômicas dos sujeitos investigados.

O conceito de lugar, que será trabalhado neste artigo, está presente em um contexto marcado pela luta e resistência de sujeitos e movimentos socioespaciais e socioterritoriais, disputas e lutas que marcam por um processo de disputa de classes antagônicas, com propósitos e intencionalidades heterogêneas (FERNANDES, 2005; 2009; 2020).

É por esse motivo que a discussão foi iniciada com um trecho do poema que expressa essa disputa territorial, a luta pelo lugar e a busca por ressignificar o lugar modificado a partir da reterritorialização. Assim, observou-se que o corpo que é expulso do seu lugar destrói e reconstrói novos lugares na busca por novos significados ou pela manutenção das práticas culturais que foram impactadas pelo processo de desterritorialização. Esses sujeitos, por sua vez, resistem, até mesmo ao “mar do Paraná”, uma alusão à chegada das Usinas Hidrelétricas e dos impactos causados no município de Brasilândia, sobretudo, às comunidades ribeirinhas e indígenas, conhecidos como Ofaiés.

O presente artigo é resultado de seis meses trabalho, investigação, levantamentos e construções teórico-metodológicas adquiridas para que dada leitura fosse realizada da forma mais adequada e qualificada possível. Os meses relacionados à essa construção foram potencializados pela disciplina de graduação “Trabalho de Campo: a relação cidade e campo e suas processualidades socioterritoriais”, realizada na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências e Tecnologia (campus de Presidente Prudente), ministrada pelos professores doutores Raul Borges Guimarães e José Mariano Caccia Gouveia, para que o nosso entendimento em torno de diferentes áreas da Geografia fosse, de certa forma, incomodada, sobretudo, no sentido de nos movimentar na busca por uma geografia dinâmica, não reducionista e dicotômica.

O trabalho desempenhado durante a disciplina provocou e motivou a construção deste artigo que tem, por objetivo, compreender uma das categorias mais relevantes para a Geografia, isto é, o lugar, partindo das vivências e trajetórias que foram construídas durante o trabalho de campo com a comunidade rural que tivemos contato.

Iniciamos o artigo com o poema intitulado “Que lugar é esse?”, exatamente para provocar uma reflexão em torno do conceito de lugar a partir da materialidade e existência de sujeitos específicos que foram impactos pela chegada da Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta. Nos inserimos na comunidade rural, especificamente no Assentamento Santana localizado no município de Brasilândia em Mato Grosso do Sul; dada inserção possibilitou o contato com diferentes histórias de vida, saberes, vivências, percepções de mundo, de geografia, de escala, de natureza, de economia, mas, principalmente, de como esses sujeitos compreendem o lugar que habitavam antes do processo de desterritorialização.

A construção deste artigo é, portanto, uma tentativa de compreender o conceito de lugar no campo, a partir das vivências dos sujeitos, de suas práticas, da compreensão de lugar-mundo e de suas vivências que foram valorizadas com a aplicação de entrevistas semiestruturadas e que foram identificadas como “histórias de vida”.

Para alcançar o objetivo, realizamos a revisão bibliográfica e a pesquisa documental em torno do conceito de lugar, além de outros artigos que evidenciaram as dinâmicas territoriais e o processo de desterritorialização dos ribeirinhos da Barranca e seu processo de reterritorialização na área rural do município de Brasilândia, estado do Mato Grosso do Sul. Ainda, realizamos três entrevistas semiestruturadas[1] com pessoas moradoras no Assentamento Rural Santana, um dos assentamentos criados para os moradores atingidos pela desterritorialização marcada pela chegada da Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta.

O trabalho está dividido em duas grandes estruturas que estabelecem um diálogo na busca pela compreensão das dinâmicas presentes no assentamento. Na primeira estrutura buscamos, através da pesquisa documental e bibliográfica, compreender o processo de desterritorialização que as comunidades ribeirinhas sofreram, após a instalação da Usina nas proximidades do município de Brasilândia – MS.

Assim sendo, buscou-se compreender os impactos que culminaram e deflagraram diferentes problemáticas, sejam elas territoriais, econômicas e culturais, partindo do processo de desterritorialização, resultando em um novo processo de territorialização e do ato e busca de ressignificar o lugar.

Na segunda grande estrutura, realizamos uma discussão a partir da problemática da desterritorialização, isto é, os impactos concretos e reais, vivenciados pela comunidade rural/assentamento Santana a partir da instalação da Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta e do reassentamento. Com isso, realizamos uma discussão em torno do conceito de lugar, compreendendo a atual configuração do assentamento e discutindo essa categoria que é tão relevante para a geografia.

O conceito de lugar empregado e trabalhado neste artigo, pode ser compreendido a partir de uma busca bibliográfica relevante, agrupando uma série de autores na construção de dado conceito, como Alves (2012), Buttimer (1982), Cabral (2017) e Cardoso et al (2017).

Nas atuais condições de globalização, a metáfora proposta por Pascal parece ter ganho realidade: o universo visto como uma esfera infinita, cujo centro está em toda parte... O mesmo se poderia dizer daquela frase de Tolstoi, tantas vezes repetida, segundo a qual, para ser universal, basta falar de sua aldeia. (SANTOS, 1999, p. 212)

Faremos uma releitura da categoria de lugar a partir de uma visão da geografia clássica, teorética, até a crítica, valorizando, sobretudo, a última leitura, exatamente pelo caráter histórico-crítico-social desempenhado pelos autores que nela trabalharam. Como aponta Santos (1999), o desenvolvimento do meio técnico-científico-informacional ressignificou e potencializou a compreensão do lugar, é por esse motivo que a nossa aldeia, isto é, que o Assentamento Santana, pode ser universal, basta falarmos e propormos uma leitura através dos olhos dos assentados; assim o faremos.

2. DESTRUIR E CONSTRUIR LUGARES: A INSTALAÇÃO DAS USINAS HIDRELÉTRICAS (CESP) E O PROCESSO DE DESTERRITORIALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES RIBEIRINHAS

A Companhia Energética de São Paulo foi fundada, segundo a CESP (2019), em 1966, na fusão de cinco companhias de hidrelétricas estaduais e seis empreendedoras hidrelétricas privadas comandadas pelo Estado. Por três décadas, a CESP se consagrou como a maior geradora de energia elétrica do Brasil.

Atualmente, é composta por três Usinas Hidrelétricas, sendo elas a Porto Primavera, Paíbuna e Jaguari, instaladas nas bacias hidrográficas do Rio Paraná, no Oeste do estado de São Paulo e do Rio Paraíba do Sul, no Leste do estado.

Quadro 1
Parque Gerador das concessões da CESP

Organização: os autores (2021)

CESP (2019)

Cabe destaque para a Usina Hidrelétrica Porto Primavera, popularmente conhecida como Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta, que foi construída a partir de 1988, buscando cumprir a geração de riquezas para os acionistas, promovendo o aumento da capacidade produtiva. Todavia, essa construção não levou em conta a vida e o cotidiano das famílias que viviam às margens do Rio Paraná e Rio Verde, entre os municípios de Panorama – SP e Brasilândia – MS (MIRANDA, 2014).

Apesar das hidrelétricas terem que suprir as necessidades do progresso industrial, os impactos devastadores, tanto ambientais quanto sociais, não são colocados em pauta, causando mudanças agressivas e involuntárias. Por isso, podemos analisar que:

os programas de desenvolvimento das hidrelétricas que visam à necessidade de aumentar a produção elétrica, devido ao aumento de industrialização no Brasil, não levam em conta o modo de vida e de trabalho das famílias ribeirinhas que moram nas margens dos lagos onde as hidrelétricas são construídas, expulsando-as de seu pedaço de chão. Assim, as hidrelétricas causam grandes impactos ambientais e sociais à população ribeirinha, desalojando as famílias de seu lugar de produção de renda e de sobrevivência. (LOPES, 2012 p. 193).

As famílias afetadas pela Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta, antes do processo de desterritorialização e reterritorialização, viviam às margens do Rio Paraná e Rio Verde. De acordo com Kludavicz (2001), a partir do levantamento da CESP, em 1998, 334 famílias moravam na margem do Rio Paraná e Rio Verde, mais conhecida pelos moradores como Barranca. Segundo o autor, através das entrevistas feitas naquele local antes da Barragem da Usina, os moradores relataram que ocuparam aquele local de difícil acesso no final da década de 1940 e início da década de 1950. Ali, muitos casaram, tiveram filhos, netos e, ainda, criaram vínculos sociais com a comunidade, através de amizades, trabalho e relações econômicas: “um dos princípios que valorizavam em sua cultura, era o hábito de ajudarem uns aos outros” (MIRANDA, 2014, p. 85)

Naquela região, as comunidades, que são identificadas como ribeirinhas, se diferenciavam, principalmente, a partir das funções de subsistência, sendo comuns as atividades ceramistas relacionadas às olarias, além da pesca, agricultura e a pecuária. Todas essas ações aconteciam em torno do Rio, sobretudo para os oleiros, que retiravam a sua principal matéria-prima, a argila, para a fabricação de suas peças; e, os pescadores sobreviviam por meio da venda de peixes e iscas.


Figura 1
Inundação das Olarias do Rio Verde e Paraná
Dutra, 2000.

Na figura 1, é possível observar o impacto causado pela inundação provocada pela Usina Hidrelétrica. Anteriormente, com a quantidade enorme de argila, foram instaladas 35 olarias, produzindo tijolos maciços artesanais, usados na construção civil e que se utilizavam da mão de obra da comunidade. Sendo assim:

isso mostra que a barranca era muito mais que uma barranca. Pois por trás dela, havia uma série de atividades que eram exercidas pelos ribeirinhos para garantir a sobrevivência. Ninguém era só oleiro, só agricultor, só pescador ou só assalariado. (KUDLAVICZ, 2001, p.96)

Kudlasvick (2001) relata, ainda, por meio de entrevistas, que as famílias ribeirinhas tinham uma relação de dependência e respeito com rio, já que lá, além da quantidade de peixes e argila, a terra também era muito fértil, sendo possível plantar arroz, milho e feijão sem adubo. Infelizmente, eles não sabiam que, a partir dos anos de 1970, essa relação mudaria.

3. O REASSENTAMENTO: “’NÓIS’ FOMOS JOGADOS AQUI”

O processo de construção da Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta se estendeu durante 23 anos: iniciou-se no ano de 1980, durante a ditadura militar, tendo sua última instalação geradora em 2003. No ano de 1983, uma enchente destruiu grande parte dos bens das comunidades que moravam na margem do Rio Paraná e, com isso, os moradores passaram a desconfiar de que a Usina Hidrelétrica estaria liberando uma quantidade significativa de água, tendo em vista que, no passado, enchentes como aquela não haviam sido registrada. Um dos entrevistados por Kudlasvick (2001, p. 14) relata:

A primeira coisa que você pode escrever, com certeza, foi a enchente de 1982/83. Nós temos a marcação lá na Igreja, que dá na cota 260. É a altura da água que vai ficar. Por isso a gente acha que naquela época da enchente já foi tirado o nível da altura que ia ficar a barragem. Aí começou as mudanças [...]. Com certeza de lá para cá [...] ninguém tem mais paz.

Depois disso, os funcionários da CESP, segundo Kudlasvick (2001), com o relato de seus entrevistados, fizeram os primeiros levantamentos das famílias que moravam na área. Muitas ameaças foram feitas, os impedindo de construir algo, além de fazerem pressão psicológica, alegando que não ganhariam a indenização.

Não bastando, antes da construção da Usina Hidrelétrica, o cadastramento feito pela CESP para classificar os ribeirinhos de acordo com a sua fonte de renda, separou inúmeras famílias, que foram classificadas por agricultores e pecuaristas, oleiros, pescadores, mão-de-obra assalariada e comerciantes. Todos eles, em tese, teriam o direito ao reassentamento. Como já foi mencionado, a comunidade não tinha apenas uma fonte de renda e muitos não sabiam o que responder.

Com essa classificação, a empresa projetou programas de reassentamento para as famílias, desconsiderando totalmente as outras fontes de renda com o ecossistema local:

Com relação ao atrelamento das negociações por subprogramas, cada atividade integrante de um subprograma passou a negociar as suas reivindicações separadamente, promovendo, conforme os depoimentos das lideranças dos reassentamentos e das entidades CPT e STR, o enfraquecimento organizacional das famílias atingidas. Por outro lado, a CESP, com apoio da Prefeitura Municipal de Brasilândia, justifica que a adoção de subprogramas contribuiu/ocorreu para facilitar as negociações por interesses específicos de cada atividade profissional e explicam que cada categoria tem a sua peculiaridade, tem atividades diferentes. De acordo com a empresa, um pescador não tem a mesma condição de um oleiro. (SOUZA e HESPANHOL, 2006, p. 169)

Muitos compromissos firmados com a CESP, de acordo com Souza e Hespanhol (2006, p. 170) não foram cumpridos:

a) “Desvinculação das ações de remanejamento de população daquelas da área de engenharia”. Trata-se de não postergar o deslocamento das famílias para as vésperas de enchimento do reservatório (EIA-RIMA Vol. III, 1994, p. 317). Conforme depoimentos e documento que atesta reclamação na defensoria pública expedida pela D. Maria de Lordes da Silva, ainda em 1998, ou seja, às vésperas do enchimento do lago, de que as famílias ainda estavam desnorteadas quanto ao seu futuro – deslocamento, reassentamento, indenização, não sabiam nada. b) “Substituição do caráter distributivo que, de certa forma caracterizou os projetos de reassentamentos já conduzidos pela CESP”, ou seja, a alternativa reassentamento não pode se limitar a apenas distribuir terras, sem munir as famílias de condições básicas para modificar substancialmente suas vidas (EIA-RIMA Vol. III, 1994, p. 318). Quanto a esse item, constatou-se que, por não haver crédito agrícola, água suficiente e assistência técnica eficaz, o processo produtivo nos dois reassentamentos ficou comprometido, desestabilizando as famílias e provocando desânimo e consequentemente abandono da produção agrícola e/ou a venda do lote. c) “Minimização de riscos de êxodo rural, consubstanciados no âmbito restrito do instituto da indenização”. Essa diretriz tem por objetivo lógico, evitar que por qualquer motivo, os reassentados deixem o meio rural migrando para a cidade, o conhecido processo de êxodo rural, para que não acarrete transtornos sociais e econômicos no meio urbano (EIA-RIMA Vol. III, 1994, p. 318). Considerando os depoimentos, deduz-se que, após tantas vendas de lotes, boa parte dessa população que deixa o reassentamento, o destino deve ter sido as cidades da região. d) “Garantir a participação efetiva das famílias na discussão da concepção dos Projetos de Reassentamentos” (EIA-RIMA Vol. III, 1994, p. 319). Foi muito questionado pelos reassentados e pelas entidades de apoio – CPT e STR – que os ribeirinhos não tiveram participação efetiva no processo, que estes estiveram ausentes nas reuniões de negociações e que sempre foram representados pelo poder público estadual e municipal.

A partir de acordos, a Companhia Energética de São Paulo comprou três fazendas, a Santa Emília, Santana e Pedra Bonita, uma próxima da outra, localizadas no município de Brasilândia, estado do Mato Grosso do Sul e, assim, iniciou-se o processo de retiradas das famílias e implantação da infraestrutura, sendo a Prefeitura a fiel depositária da área, ficando sobre a sua responsabilidade a implantação da energia elétrica, fornecimento de água, ruas e construção de casas.


Figura 2
Projeto de Reassentamento Populacional Rural da Fazenda Pedra Bonita/Brasilândia/MS
SOUZA e HESPANHOL, 2006, p. 170

Realizamos três entrevistas semiestruturadas no Assentamento Santana, município de Brasilândia – MS. Dois desses moradores vieram das margens do Rio Paraná e Rio Verde e, outro, apenas comprou o lote e vive no Assentamento. É importante ressaltar que muitos moradores do Assentamento Santana não são os ribeirinhos, já que muitos desses venderam seus lotes e se mudaram para outro lugar, justamente pelo impacto causado em seu modo de viver e sua relação com o território.

O entrevistado A, de 63 anos, afirma que era morador da Barranca e, com a construção da Usina, foi “jogado” ali, se referindo ao seu lote, que possui apenas dois alqueires. Ao ser perguntado sobre o processo de reassentamento, diz:

É, então, eles combinaram com a Prefeitura e fizeram as “cambalagens” deles lá, né, e aí negociou com a Prefeitura e largou “nóis” aqui. Chegou e largou “nóis” aqui, trouxe a gente aqui... Psiu, sai pra lá, cachorro. Até o gado da época, eu trouxe o gado tocado, porque não tinha condições de trazer, né. Tinha cento e poucas cabeças de gado e aí eles “pegou” e jogou “nóis” aqui e esqueceram. Aqui é o pessoal de Santana e Santa Emília e também a Pedra Bonita, que foi reassentada lá da Barranca. Um pegou dois alqueires e meio, outros dez e meio... Aqui eu recebi dois alqueires e eles me cederam uma reserva pra eu poder usar, na época, treze mil reais.

O entrevistado teceu críticas, a todo momento, da falta de espaço do lote. Antes, sendo pecuarista, ele tinha mais de 100 cabeças de gado e, atualmente, possui 6 cabeças e não recebeu nenhuma indenização da Prefeitura. Esse processo fez com que ele mudasse de profissão para se tornar corretor.


Figura 3
Localização do Assentamento Santana e Santa Emília
SOUZA e HESPANHOL, 2006, p. 170

Situações comuns a essa são encontradas nos assentamentos Pedra Bonita, Santana e Santa Emília, local onde foram reassentados os que trabalhavam com a pecuária e a agricultura. Apesar de na Barranca[2] não ter energia elétrica e muitos outros recursos, Maria de Lourdes, entrevistada de Kudlasvick (2001), confirma o sofrimento desses ribeirinhos que tiveram suas vidas alteradas para sempre: “[...] a gente tinha a felicidade de ter uma vida com dificuldades, mas de fartura”.

4. UMA LEITURA DA RETERRITORIALIZAÇÃO NO ASSENTAMENTO SANTANA/MS E O CONCEITO DE LUGAR

Eu que já não tinha,

Fui jogado num pequeno lote,

Sem nada.

O meu mundo

Que pequeno era,

Mais pequeno ficou,

Inundado.

Os Autores

(Fragmento do poema “Jogados”)

O trabalho de Alves (2012) constatou que o entendimento e leitura feita em torno do campo e cidade trilhou uma linha muito próxima do pensamento geográfico e dos paradigmas conceituais adotados em determinada época, isto é, “os estudos das relações dos espaços rurais e urbanos tiveram os prismas epistemológicos da corrente clássica, teorética, crítica e cultural” (ALVES, 2012, p. 8).

Na década de 1990, observa-se uma retomada dos estudos e reflexões sobre a relação campo-cidade e suas relações hierárquicas presentes na dimensão econômica, social, política e cultural, existente entre o campo e a cidade que, por vezes, materializam-se em relações desiguais.

Sob o prisma da fenomenologia, os estudos da relação entre campo e cidade ganha uma nova percepção, esta por sua vez, baseada nas diferentes relações existentes entre ambos, ressaltando a pluralidade de concepções e áreas que integram esses espaços.

Em uma perspectiva centralizada na geografia clássica carregada de descrições, induções e comparações, as pesquisas realizadas nesse período (1930-1970), tem uma influência da geografia francesa. Portanto, os estudos entre campo e cidade, configuram-se como gêneros distintos, modos de vidas heterogêneas, havendo pouca integração entre eles, desenvolvendo-se em espaços distintos, dicotômicos e hierarquizados.

Na perspectiva clássica, o campo determina a dinâmica espacial urbana, isto é, a formação de vilas e pequenos núcleos estão intrinsicamente relacionadas com o processo econômico que se dava no campo, sobretudo, relacionado a produção. Como destaca Deffontaines (1944), durante três séculos, o povoamento sempre se deu nos espaços rurais (fazendas e lavouras) e nunca na materialidade das vilas urbanas.

Esse processo evidencia-se a partir da leitura da expansão da malha ferroviária, sobretudo, no interior do estado de São Paulo, mediante a necessidade de escoar gêneros agrícolas, principalmente o café, que era produzido no campo para as cidades, como também para exportação. Note que o campo e as necessidades econômicas possibilitam o surgimento de uma malha ferroviária que culminou na criação de vilas e cidades e de suas respectivas estruturas e características.

A geografia nova, critica ou social, surge no final da década de 1970 no Brasil, marcada por características muito distintas das outras abordagens. Possui como objetivo estabelecer uma aproximação maior com as ciências sociais dentro do seu arcabouço teórico-metodológico, buscando, sobretudo, prestar um serviço à comunidade, por meio da exposição dos problemas resultantes do processo histórico de ocupação e formação do território.

O pensamento social e econômico na geografia agrária foi fortemente influenciado pela aproximação com as bases marxistas, a partir da década de 1980. Até então, faziam-se poucas críticas sobre as relações de trabalho, concentração de terras e o desenvolvimento desigual no campo, e quando aconteciam às críticas, essas não eram baseadas num referencial histórico-dialético, ou seja, a grande mudança na crítica sobre as desigualdades agrárias foi na inserção do método. (ALVES, 2012, p. 14)

A relação cidade-campo nos estudos da geografia crítica, incorpora uma série de elementos evidenciados por uma mudança socioterritorial, ou seja, tem-se uma população predominantemente urbana, insere-se ruralidades no espaço urbano, cria-se cidades do agronegócio, materializam-se espaços contínuos (rururbanos), agricultura urbana, como também o desenvolvimento do meio técnico-científico-informacional.

A noção de ruralidade e urbanidade ganha destaque nas pesquisas em geografia, pois não trata somente da questão espacial (do espaço absoluto), mas o espaço vivido e imaterial, considerando os valores e o modo de vida que constituem o lugar (BUTTIMER, 1982). A ideia de estudar o espaço apenas pelos fixos, funções e formas, não responde a totalidade da relação campo-cidade, deve-se atentar, portanto, aos processos da sociedade.

Dessa forma, a nova dinâmica, compreendida pela geografia crítica, isto é, o desenvolvimento desigual, as hierarquias presentes no campo e na cidade e os problemas do campo, refletem em diferentes questões que podem ser trabalhadas. No entanto, centralizamos nossa discussão nos impactos causados por esses processos antagônicos do sistema capitalista no campo e do conceito de lugar a partir dessas mudanças.

A discussão realizada ao longo desse artigo está centrada no conceito de lugar e nas potencialidades e possibilidades de se ler e compreender as dinâmicas e os processos que envolvem a territorialização, desterritorialização e reterritorialização dos sujeitos que compõem o Assentamento Santana-MS e que foram entrevistados durante a realização dessa pesquisa.

Para potencializar o debate conceitual e teórico, torna-se relevante dizer o que se compreende a partir dos processos geográficos que envolvem a territorialização, desterritorialização e reterritorialização, bem como o conceito de território adotado a partir da perspectiva do conflito e da disputa engendradas pelos movimentos socioespaciais e socioterritoriais e outros sujeitos produtores de espaços e territórios. Vale lembrar que essas discussões vêm sendo largamente realizadas por um coletivo de pesquisadores nacionais e internacionais e por uma rede internacional de pesquisa (REDE DATALUTA).

O trabalho desenvolvido por Sam, Fernandes e Torres (2021) avança na reflexão sobre a ação dos movimentos socioterritoriais e sujeitos como uma categoria analítica que tem como objetivo central analisar a mediação do espaço e apropriação do território. Contrastam os conceitos de movimentos socioterritoriais, movimentos sociais e movimentos socioespaciais em quatro eixos de análise: 1) como o espaço e o território são produzidos como estratégia central para a realização dos objetivos de um determinado movimento, isto é, a partir de suas intencionalidades e objetivos que ordenam e reúnem um conjunto de estratégias expressas no espaço e território; 2) os espaços e os territórios produzem as identidades dos movimentos e geram novas subjetividades políticas; 3) o espaço e o território são lugares de socialização política que tecem novos valores e alteram conjunturas; 4) por meio dos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, os movimentos e sujeitos criam novas instituições.

O território tem sido um conceito central para a compreensão das disputas e narrativas espaciais construídas pelos movimentos na América Latina, ao mesmo tempo, observa-se uma fraca interação ou discussão dos movimentos sociais a partir de um enfoque territorial ou quiçá geográfico entre os geógrafos anglófonos.

Para entender os processos geográficos de Territorialização, Desterritorialização e Reterritorialização (T-D-R) que envolvem as dinâmicas territoriais analisadas, é importante expressar o que se compreende por território, afinal, os territórios são construídos e destruídos a partir das múltiplas intencionalidades e estratégias (SOUZA, 2006).

É sempre importante ressaltar que o conceito de território é utilizado por diferentes autores sob diferentes perspectivas, apesar de não existir um consenso entre os autores sobre a utilização do conceito, é possível observar um diálogo entre autores como Fernandes (2005; 2008), Souza (2006) e Haesbaert (2009), que projetam suas discussões a partir do conflito, do poder e da altercação que provocam movimentos de construção, destruição e ruptura.

Ainda que exista uma vasta bibliografia que discuta o conceito de território, não é incomum que se realize a confusão com outros conceitos da geografia. Um exemplo claro dessa relação e da diferença entre o território e os outros conceitos, é que o conceito chave para a discussão do processo de territorialização da usina hidrelétrica, desterritorialização da comunidade que ali vivia e territorialização em um outro espaço, é o conceito de lugar. Entretanto, devido as disputas e as relações é imprescindível compreender a dimensão territorial a partir de uma perspectiva relacional, ou seja, como o território produz os sujeitos e contribui para a construção do lugar, e como os sujeitos constroem o território a partir de suas práticas culturais, sociais e econômicas.

Com essa perspectiva, o território passa a ser percebido, essencialmente, como um conceito dinâmico e relacional, além de ser interpretado para além das formas modernas e das relações de poder que se dão a partir da ideia de Estado Soberano, ou, simplesmente, da afirmação de que território é poder. Sim, território é poder, mas é também um conjunto de outros processos, dinâmicas, relações que se dão no âmbito social, político, econômico e cultural, extrapolando, portanto, sua redução a uma porção do espaço geográfico controlada e gerida por um grupo vencedor.

O território é um conceito multidimensional, multiescalar e nele está contido o espaço material e imaterial, bem como as diversas intencionalidades construídas dialeticamente pelos movimentos sociais a partir de suas estratégias coletivas. Nesse movimento, o conceito de território também expõe sua capacidade de produzir contradição, solidariedade e conflitualidade (FERNANDES, 2005).

Ao mesmo tempo, dada tentativa de apropriar-se de determinados territórios não se dá/restringe somente a porção material do espaço geográfico dotada de poder, contenção, resistência, disputa e conflito, isto é, o território, mas também pode se dar no plano imaterial, a partir da disputa de paradigmas, conceitos, categorias e abordagens.

Além da compreensão da multiescalaridade do espaço, surge também, a partir da leitura de Fernandes (2005) em torno dos movimentos socioespaciais e socioterritoriais uma leitura em compreensão sobre o território. Assim, o território se apresenta como conflituoso e disputado: ele é, portanto, uma fração do espaço geográfico, “são as relações sociais que transformam o espaço em território e vice-versa, sendo o espaço uma priori e o território uma posteriori” (FERNANDES; 2005, p. 27).

As relações sociais, por sua diversidade, criam vários tipos de territórios, que são contínuos em áreas extensas e ou são descontínuos em pontos e redes, formados por diferentes escalas e dimensões. Os territórios são países, estados, regiões, municípios, departamentos, bairros, fábricas, vilas, propriedades, moradias, salas, corpo, mente, pensamento, conhecimento. (FERNANDES; 2005, p. 27)

Os territórios materiais e imateriais são expressões da vida e da relação humana e se manifestam de diferentes formas no espaço, como bem coloca Fernandes (2005). Assim, as manifestações de todas essas pluralidades e dos resultados que saem dessa interação entre os sujeitos que produzem e disputam territórios pode ser expressa pela espacialização e espacialidade, territorialização e territorialidade, processos fortemente vinculados ao lugar.

Os processos geográficos que envolvem a Territorialização, Desterritorialização e Reterritorialização (T-D-R), são construídos e reconstruídos a partir das relações entre grupos sociais e sujeitos a partir das diferentes intencionalidades e disputas territoriais. Assim, a ação conduzida por um sujeito ou uma empresa/corporação pode modificar parcialmente ou em sua totalidade as relações territoriais e as territorialidade de uma determinada comunidade ou povo, como é possível observar no grupo entrevistado para a realização desse manuscrito.

Como aponta Chelloti (2013) os processos de Territorialização, Desterritorialização e Reterritorialização (T-D-R) são marcados pelos movimentos que se dão no/pelo espaço. Assim, a territorialização é compreendida como um processo de criação de um território, que de maneira dialética produz a destruição do território que ali existia (desterritorialização) e, por fim, pode ocorrer o processo de recriação do território (reterritorialização).

Todo esse processo culminou em diferentes impactos à comunidade ribeirinha, configurando-se, portanto, como sujeitos que foram atingidos por barragens. O poema inicial expressa um pouco do que será trabalhado a partir deste tópico; isto posto, os sujeitos que viviam na Barranca, que tinham na pesca a sua sobrevivência, logo, o rio era um importante meio de obtenção da vida que alimentava esses sujeitos, foi perdido, através de um processo de desterritorialização, ocasionando, portanto, uma mudança do lugar, dos símbolos, dos afetos e do modus operandi desses sujeitos, que agora, não sobrevivem da pesca, mas necessitam se adaptar a novas formas e funcionalidades no campo (FERNANDES, 2009).

Realizamos diferentes visitas aos lotes dos assentamentos, sobretudo, do Assentamento Santana, onde pudemos aplicar entrevistas semiestruturadas e ouvir um pouco da história de vida daqueles sujeitos que ali estavam.

A partir das questões já apresentadas e que estão centradas em um processo conflituoso, marcado pelo movimento de expulsão dos seus lugares originais e que culminou num reassentamento, consideramos necessária uma discussão em torno do conceito de lugar, para compreendermos melhor, esses símbolos, marcados e representados nos discursos desses sujeitos.

Como expresso no texto de Ferreira (2000), a categoria do pensamento geográfico e o conceito de lugar, atrelou-se a geografia humana, sobretudo, por dois principais galhos: a geografia humanista e a geografia radical.

Com base na geografia humanista, o conceito de lugar é compreendido a partir de diferentes significados ou centro de significados, que se relacionam com a experiencia da vida humana. De uma maneira ou de outra, os geógrafos humanistas assumem que o conceito de lugar permite focalizar o espaço em torno das intenções, do formato das ações e das experiencias humanas que produzem significados, isto é, lugares.

Um aspecto curioso dessa abordagem está no reconhecimento de que o sentido de lugar não está limitado ao nível pragmático da ação e da percepção e que sua experiência (direta ou simbólica) se constitui em diversas escalas: atualmente ela formaria um contínuo que inclui o lar, como provedor primário de significados; a localidade ou bairro, como campo de sociabilidade; a cidade; as regiões; o Estado-nação e até mesmo o próprio planeta. (CABRAL, 2017, 148)

Logo, o conceito de lugar é medido a partir do constructo histórico e social, relacionado com os símbolos, os saberes, as vivências, as experimentações, o psicológico, que constroem e desempenham um ser no lugar e um lugar no ser, através da relação de forças materiais e imateriais. Como aponta Cabral (2017, p. 148), “seja qual for o momento da história, o mundo se define como um conjunto de possibilidades e cada lugar se diferencia por realizar apenas um feixe daquelas possibilidades existentes”.

O Assentamento Santana, através dos conflitos e problemáticas gerados pela implantação das usinas, trouxe para esses sujeitos uma nova concepção de lugar, de vida, de vizinhança, de espaço vivido, de afeto e de possibilidades.

Numa escala global, valoriza-se a construção de escalas superiores e externas, com pouco significado com base nos afetos e nas vivências, já que a abstração se sobrepõe a especialização. No entanto, a escala local, se funde a escala do cotidiano, onde se estabelecem comunicações (vizinhança, intimidade, emoção, cooperação, comunitarismo e socialização).

Pesquisador: E a Fibria? Vocês conhecem a (pausa) ... É que agora não é mais Fibria, né?!

Entrevistada C: Não, é a Suzano.

Pesquisador: Suzano... Já ouviram falar? Conhecem ela?

Entrevistado B: Não, passei só um dia na frente de passagem.

Entrevistado D: É, passamos um dia lá só. Teve até uma vez que chamaram... Porque a cada três pessoas do assentamento era pra conhecer lá, né. Mas “nóis” não foi. Mas eles falaram que é pra marcar de novo, pra conhecer ela.

Pesquisador: Parece que eles plantam bastante eucalipto, né?!

Entrevistado B: É, muito eucalipto... Por isso que eles “tá” dando assistência, né, porque eles “planta” muito eucalipto e diz que a intenção do SAF é pra servir a cozinha deles, porque eles “planta” muito eucalipto, então eles “tem” que servir alimento, né, dar assistência para o povo.

Entrevistada C: Como eles plantam muito eucalipto, aí precisa assim, entendeu, de alimento e quanto mais mato, né, melhor pra eles. É isso aí que eles falam.

Pesquisador: Vocês veem isso como algo bom?

Entrevistada C: Muito bom.

Pesquisador: A Fibria como algo bom...

Entrevistado B: Muito bom, né.

Entrevistado D: “Bão” demais, “cê” tá louco.

Entrevistado B: “Nóis” nunca “arrumô” uma ajuda igual à que “nóis” tem hoje.

Entrevistado B: Rapaz, tudo aqui vem deles.

Entrevistado C: Eles incentivam, na verdade, né. Porque tem muita gente que, por incrível que pareça, não mexe, não gosta, muito sitiante aqui não quer saber dessas coisas. Só que meu pai e minha mãe não, né.

Entrevistado D: É, porque tem “coisa” que se você for tirar do seu bolso...

Entrevistado C: Né, mas agora você ganha tudo, ganha uma oportunidade e os outros não “gosta” de mexer, então....

A Fibria (Suzano) como relatada na entrevista acima, é uma empresa que realiza o plantio de eucalipto em uma vasta área nas proximidades do Assentamento Santana. Com base em outros diálogos com outros sujeitos do assentamento, identificamos alguns problemas a partir da chegada da empresa; um deles, pode ser observado pela concentração de terras, por meio da compra de lotes que foram realizadas pela mesma.


Figura 4
Imagem da horta orgânica e de algumas espécies fornecidas pela Suzano aos entrevistados
Os autores, 2021.

Todo esse processo trouxe uma nova dinâmica para o assentamento, esta por sua vez, marcada pela interação de alguns assentados com a empresa. Note que os entrevistados possuem uma leitura positiva da Fibria (Suzano), pelo fato de a empresa estar contribuindo com o desenvolvimento de seu lote como é possível observar a partir da figura 4, por meio do fornecimento de espécies que compõem os Sistemas Agroflorestais (SAFs).

O lugar pode ser concebido como a menor unidade de todas e está intrinsicamente vinculado com o íntimo do ser humano. Como aponta Cardoso et al (2017, p 87), “lugar é onde a vida acontece, local em que o sentimento de pertencimento surge ancorado, onde a memória humana se sedimenta”. O lugar pode ser entendido, portanto, a partir do afeto estabelecido entre o sujeito e o meio em que vive e estabelece ligações e conexões afetivas, isto é, o sítio, o campo, a casa, elementos que estabelecem uma relação experiencial.

Logo, podemos compreender através das exposições realizadas anteriormente que se o espaço e a paisagem são modificados pela ação humana através de diferentes processos e sujeitos, criam-se novas teias e dinâmicas de relações dimensionais, além de novos atributos/elementos/símbolos e se destrói materialmente e imaterialmente parte do que aquele sujeito vivenciou ali, portanto, ressalta Cardoso (2017 et al, p. 88), “o caráter dinâmico dos lugares pode ser observado nas intensas transformações do espaço”. É nesse sentido que podemos observar as mudanças que ocorreram no processo de reterritorialização das famílias retiradas da Barranca, tendo em vista que muitos desses sujeitos impactos pela chegada da UHE não permaneceram no novo território, pela falta de possibilidades, pela precarização do espaço fornecido e pelas funções que esses sujeitos desempenhavam anteriormente.

Se uma decisão institucional modifica um lugar por interesses, econômicos ou políticos, são disseminadas novas informações que podem não ter relação alguma com muitas pessoas. O território, enquanto parcela regida por uma gestão, recebe uma identificação que pode ser distinta do que sentem muitos indivíduos que nele habitam. (CARDOSO et al, 2017, p. 89)

Os ambientes construídos numa nova dinâmica, intensificam o debate dentro do ser do que é lugar, logo, insere-se aí, a projeção do sujeito sobre aquele espaço que fora modificado, seja pela ação governamental ou institucional, fazendo-os a lutarem com o que era e o que é, numa busca pela ressignificação do ser no espaço, tornando-se lugar ou não, numa constante busca pelo pertencimento.

A compreensão e o entendimento do que é lugar, isto é, um conjunto de símbolos, elementos materiais e imateriais, que resultam num significado afetivo, constroem e resgatam o sentimento de identidade e pertencimento. É evidente a partir do que foi exposto, que o processo de desterritorialização imposto aos ribeirinhos que hoje residem no Assentamento Santana, trouxe inúmeros impactos, sobretudo, na compreensão do lugar.

O modo de vida foi alterado, a paisagem foi alterada, portanto, a visão que se tem desse novo espaço provocou nesses sujeitos uma nova leitura do lugar e das concepções simbólicas e afetivas construídas por meio dele. Entretanto, ressaltamos também, que a chegada de empresas como a Fibria e de novas dinâmicas comerciais e políticas também constroem o lugar, da mesma forma que modificam a paisagem.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A implantação da Usina Hidrelétrica Sérgio Motta modificou completamente as relações dos habitantes que viviam às margens do Rio Paraná e Rio Verde. Além dos ribeirinhos, cabe destacar que indígenas Ofaié também foram afetados, entretanto, não se constituem enquanto nosso objeto de pesquisa e investigação.

Por meio das entrevistas semiestruturadas feitas no Assentamento Santana, nossas afirmações sobre o conceito de lugar como símbolos, saberes, vivências, experimentações são confirmadas: os ribeirinhos retirados de suas áreas tiveram que se adaptar, contra a própria vontade, à reterritorialização que lhes foi imposta. Esse processo, à luz de tudo que acontece em um modo de produção capitalista, não leva em consideração o vivido, ou seja, as relações pessoais dos indivíduos àquela terra, visando, principalmente, o lucro.

Os sujeitos impactos pela chegada da Usina Hidrelétrica (UHE) apresentam uma série de mudanças territoriais marcadas pela disputa que se dá em torno de uma determinada porção do espaço. Para a Usina Hidrelétrica, o território é sinônimo de produção de energia e crescimento econômico; para os moradores, o território faz parte da sua identidade (territorialidade) e ambos são produzidos de forma dialética, isto é, o território produz as práticas sociais, culturais e econômicas da comunidade atingida, assim como são produzidos pelas relações engendradas a partir dos símbolos e práticas desses moradores.

As mudanças que marcam as transformações territoriais e a ampla discussão em torno do lugar, estão envoltas em dinâmicas geográficas identificadas a partir da territorialização, desterritorialização e reterritorialização (TDR). Assim, a chegada da Usina Hidrelétrica representa um processo de territorialização a partir das ações concreta, nesse mesmo sentido ocorre um refluxo e a destruição das ações concretas e práticas culturais da comunidade que ali vivia ocorrendo, portanto, um processo explícito de desterritorialização.

A reterritorialização proporcionada pela Companhia Energética de São Paulo (CESP) não obteve êxito no sentido de proporcionar a esses sujeitos uma identificação com o novo território e com suas novas possibilidades, pelo contrário, o que se observa a partir da aplicação das entrevistas semiestruturadas, é um sentimento de perda, da falta, do “afogamento” das práticas culturais e do modo de vida que praticavam quando residiam na Barranca, isto é, pesca, agricultura, criação de gado, olarias, etc.

Agora o que resta aos poucos sujeitos que resistiram ao “mar do Paraná” é um lote pequeno e sem estrutura, bem como o afunilamento das relações com a Suzano, uma empresa que avança na compra dos lotes dos moradores tentados pela oferta de se mudarem para a cidade pela falta de infraestrutura e identificação territorial.

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Notas

[1] Os trabalhos de campo foram realizados durante dois dias (04 e 05 de junho de 2019), o objetivo era entrevistar entre 5 e 10 moradores, entretanto, tivemos dificuldades em encontrar os moradores em suas casas e as mesmas possuíam uma aparência de abandono. Posteriormente descobrimos através das 3 entrevistas aplicadas que muitos moradores venderam seus lotes e se mudaram para a cidade, os entrevistados apontam que essa decisão foi tomada pela falta de espaço para a agricultura e pelo fato de muitos dos moradores que foram reassentados trabalharem anteriormente com a pesca e a olaria.
[2] Barranca é o termo utilizado pelos moradores que residiam nas margens do Rio Paraná e Rio Verde.

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