Tensões Mundiais: Notícias https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais <p>A revista <strong><em>Tensões Mundiais </em></strong>é vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará. Desde 2005 a revista divulga produções da rede de pesquisa Observatório das Nacionalidades, de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Dedica-se à livre e gratuita divulgação acadêmica interdisciplinar, publicando trabalhos relativos ao tema “nações e nacionalismos” e à dinâmica multifacetária que lhe é inerente: as relações entre sociedades e Estados, as mudanças nos instrumentos de força e os processos culturais. Nosso objetivo é renovar o debate sobre o principal fenômeno político e cultural da modernidade: a emergência e a afirmação das nações na chamada "ordem internacional".</p> <p><span style="vertical-align: inherit;">Qualis Capes 2017-2020: A4 Ciência Política e Relações Internacionais<br />Prefixo DOI: 10.33956<br />e-ISSN: 1983-5744 | ISSN: 1809-3124</span></p> pt-BR Tue, 19 Mar 2024 13:36:50 -0300 OJS 3.3.0.13 http://blogs.law.harvard.edu/tech/rss 60 Histórias de Amor, Loucura e Morte https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/announcement/view/185 <p>O texto a seguir é uma transcrição da palestra proferida pelo professor argentino Matín Martinelli na VI Conferência de Geopolítica UNLu, Argentina, Debate de prólogo da VI Conferência de Geopolítica Universidade Nacional de Luján, Sede, segunda-feira, 6 de novembro, 18h, sala 801. "Palestina e Israel, a situação na guerra atual".</p> <p>Martinelli, Martín (Argentina, 1982). martinellima1982@gmail.com Doutor em Ciências Sociais, Historiador. Universidade Nacional de Luján (Argentina). Co-Coordenador do Grupo Especial da Revista Al-Zeytun/CLACSO “Palestina e América Latina” (2019-2022) do Instituto de Estudos Latino-Americanos e do Caribe (Universidade de Buenos Aires), Diretor do Observatório Geohistórico (UNLu). Autor do livro “Palestina (e Israel). “Entre intifadas, revoluções e resistências.”</p> <p>Link palestra: https://www.youtube.com/watch?v=uvaq2v0RpFw</p> <p> </p> <p><em>Palestina e Israel são um dos casos mais importantes de luta nacional, mas que, ao mesmo tempo, acaba por ser um dos mais controversos, e reflete a reconfiguração do sistema mundial</em></p> <p><strong>Sionismo não é judaísmo</strong></p> <p>O Judaísmo é uma religião composta por diferentes orientações e, como outras, seus seguidores estão espalhados por vários países. Isto contrasta com o movimento político sionista, que é “uma ideologia de apropriação colonial em trajes milenares”. Através desta caracterização, distinguimos posições antijudaicas, antissionistas e anti-israelenses. A primeira posição é racista, a segunda é anticolonial e a terceira é semelhante a uma perspectiva anti-Estados Unidos, uma vez que expressa uma rejeição genérica ao imperialismo. Mas o central é registar que Israel actua de acordo com as prioridades geopolíticas daquele país.</p> <p>O sionismo é um movimento político promovido por judeus em diversos países europeus. Seus primeiros ideólogos situam-se na segunda metade do século XIX, especialmente nas décadas finais. O seu objectivo era estabelecer um Estado com nacionalismo étnico juntamente com uma forma de colonialismo europeu ultramarino. Além disso, procurou que a identidade judaica, religiosa e em parte cultural, se fundisse numa identidade nacional judaica moderna, embora não assumissem um único país de origem, nem a mesma língua, nem cultura, nem costumes em comum, porque vinham de lugares diferentes.</p> <p>Ele propôs um renascimento nacional como alternativa à perseguição aos judeus que ocorria em vários países. Em 1896, Theodor Herzl, um jornalista austro-húngaro, publicou o livro <em>O Estado judaico</em> onde delineou a ideia de um “restabelecimento” do Estado judaico como uma solução para o “problema judaico” na Europa e para o antijudaísmo. Aí lançou as bases para a constituição do referido Estado e dedicou-se a procurar o apoio das potências mundiais para o conseguir.</p> <p>Nesse sentido, Theodor Herzl em 1896 afirmou: “A Palestina é a nossa pátria histórica inesquecível. Seu nome por si só já seria um chamado unificador e poderosamente emocional para nosso povo. Para a Europa, seríamos parte integrante do baluarte contra a Ásia: constituiríamos a vanguarda da cultura na sua luta contra a barbárie. Como Estado neutro, manteríamos relações com toda a Europa que, por sua vez, teria de garantir a nossa existência.”</p> <p>O nacionalismo do final do século XIX e a Grã-Bretanha como potência mundial garantiriam a promoção do novo Estado. Theodor Herzl propôs vários locais para localizar os judeus, como Palestina, Uganda ou Argentina: “Palestina ou Argentina? Deve-se preferir a Palestina ou a Argentina? A Sociedade aceitará o que for dado e o que a opinião geral do povo judeu declarar. A Sociedade estabelecerá ambos. A Argentina é um dos países naturalmente mais ricos do planeta, com uma enorme superfície, uma pequena população e um clima moderado. A República Argentina teria o maior interesse em nos ceder uma parte do seu território. Naturalmente, a actual infiltração judaica gerou divergências; “A Argentina deveria ser esclarecida sobre a diferença essencial da nova migração judaica.”</p> <p>Também se ofereceu para ser uma guarda de honra dos lugares santos da cristandade, com alguma forma de extraterritorialidade de acordo com o direito internacional.</p> <p>O objetivo do projecto é salvaguardar uma fortaleza “branca” (ocidental) num mundo “negro” (árabe). Isto traz implicações como o medo de ser ultrapassado demograficamente, o racismo, bem como a dicotomia entre o Ocidental e o Oriental ou Islâmico, como o seu oposto negativo. Junto com isso, ocorreu outro tipo de diferenciação dentro de Israel. Por um lado, os judeus vieram de países de língua árabe do Norte de África e do Médio Oriente, chamados Mizrahim. Este termo unificou o seu significado com o nome Sefaradim – é usado hoje e historicamente referido aos judeus da Península Ibérica que tentaram ser desarabizados. Por outro lado, os Ashkenazim, especialmente os europeus, que formaram e continuam como a elite dominante.</p> <p>O sionismo secularizou e nacionalizou o judaísmo, embora não na sua totalidade. O seu interesse central era a terra, ele exerce o colonialismo dos colonos, de acordo com a sua própria versão e a versão britânica. Para estabelecer um Estado Judeu, era necessário gerar uma infra-estrutura. Até 1918 e depois com a ocupação britânica da Palestina, planeavam criar ali um Estado Judeu para escapar a uma história de perseguições e pogroms no Ocidente, e consideravam impossível a sua assimilação nas sociedades dos países europeus onde residiam.</p> <p>Em qualquer caso, os interesses imperialistas britânicos que a apoiaram e os seguidores judeus desta política faziam parte de um grupo menor no seu início. Por sua vez, reivindicaram o que passaram a considerar como sua “antiga pátria”. Por estas razões, a campanha pela colonização estatal na Palestina está associada ao milenarismo cristão e ao colonialismo europeu do século XIX.</p> <p>Na narrativa nacionalista israelense, uma comunidade religiosa foi transformada em comunidade política, a partir de grupos dispersos pelo mundo e um coletivo definido pela religião e laços de sangue, tornou-se o Estado de Israel. Tentaram apresentá-lo como uma entidade homogênea em movimento através do tempo, desde milênios atrás até o presente. O espaço e a cultura do coletivo são estáticos, pois os casamentos, as migrações e os conflitos internos modificaram os limites do coletivo. Tal argumento também é usado com a Torá, como fonte de identificação dos judeus. Este livro, considerado sagrado, foi exibido como se fosse uma prova dos direitos nacionais em Canaã no passado e na Palestina no presente. Além de dar à nação um sentimento de orgulho e singularidade como povo escolhido.</p> <p>Inclui tendências variadas e até contraditórias, desde nacionalistas a liberais e socialistas, mas cuja maioria adere à tese territorialista, ligada à criação de um Estado-nação judeu que será o Estado de Israel. Este movimento político buscava um elemento comum para construir uma identidade própria, que era a religião/cultura judaica. O objetivo era encontrar um ponto de fusão para o novo movimento, visto que os participantes eram indivíduos de países muito heterogêneos.</p> <p>A percepção judaica da sua identidade religiosa transformou-se numa identidade nacional. Judeus de vários países, culturas e línguas que chegaram à Palestina fundiram-se – com diversas dificuldades – numa nova identidade nacional judaica, especialmente após o estabelecimento do Estado de Israel. Ao mesmo tempo, ignoraram a identidade palestiniana em documentos que consagravam o estabelecimento de uma “casa nacional” judaica como um compromisso britânico com o seu poder sobre a Palestina. Excepto durante um breve período após a publicação do <em>Livro Branco de 1939</em>, a Grã-Bretanha permaneceu fiel a esta abordagem dupla até 1947-1948.</p> <p>Até hoje, a natureza do Estado israelita é especificada pelo regresso dos judeus e pelo não regresso dos palestinos. Se essa dinâmica expirasse, a sua identidade se dissolveria. Na sociedade israelense, a participação direta do Estado e do Ministério da Educação comemora a <em>Shoah</em>. Está localizado num lugar central no discurso público israelita, bem como na sua imaginação social.</p> <p>Na fase anterior ao estabelecimento do Estado de Israel, os judeus agruparam-se para trabalho coletivo nos kibutzim e nos moshavim. A diversificação da economia na Palestina promoveu a constituição do sindicato sionista Histadrut, integrado intencionalmente – em contradição com a ideologia socialista anterior – apenas com trabalhadores judeus que promoveram a nacionalização da economia. Em 1929, a Agência Judaica foi criada para encorajar a imigração e estruturar a comunidade judaica através de instituições de autogoverno.</p> <p>Em suma, ao longo de quatro décadas, os sionistas adquiriram terras, colonizaram, estabelecendo uma população significativa mas muito menor em comparação com a população palestiniana. Em primeiro lugar, desenvolveram instituições, organizações políticas e sindicais. E mais tarde, começaram com a difusão do hebraico moderno como uma nova língua nacional e novos mitos foram estabelecidos – o empreendimento colonizador, a modernização e outros – que fortaleceram uma nova consciência e identidade nacional.</p> <p><strong>O “grande Israel”</strong></p> <p>Nas teorias do grande Israel tentam legitimar as tentativas de judaizar Jerusalém. A percepção de <em>Eretz Yisrael</em> como um todo foi manifestada no movimento da grande terra de Israel, uma organização secular de elite. A premissa representava dois factores: um conceito territorial e uma ideologia, cujo objectivo residia não só na conquista do máximo território possível, mas também na dominação co-imperial (com o poder americano) da região.</p> <p>Pesquisadores israelenses especializados em estudos bíblicos usaram um repertório de termos e frases para a região da Palestina e sua periferia, tais como: “Judéia e Samaria são o núcleo central da nação israelita” em 1967; além de “<em>Eretz Yisrael</em>”, “a terra bíblica de Israel”, “grande Israel”, “a grande terra de Israel”, “a terra onde as tribos israelitas tiveram seus assentamentos”, “a terra prometida”, “a terra da <em>Bíblia</em>” e “terra santa”.</p> <p>O termo <em>Eretz Yisrael</em> aparece apenas uma vez na <em>Torá</em> (Samuel, 1 13:19) e não existe nenhum mapa histórico ou religioso da extensão e fronteiras da “Terra de Israel”. E mesmo que existisse, na contemporaneidade não seria uma base para reivindicar esse território cerca de dois mil anos depois.</p> <p>Apesar disso, a “Terra de Israel” e outras referências bíblicas foram investidas de conotações históricas e ideológicas de âmbito transcendente tanto na retórica israelita como na cultura ocidental. De acordo com esta percepção, as escrituras religiosas dariam aos judeus o título de propriedade que lhes permitiria espalhar-se pela “Terra de Israel”, o que lhes daria uma suposta legitimidade moral para o estabelecimento do seu Estado e o colonialismo de colonização implementado.</p> <p>A relação entre as conquistas territoriais israelenses e a <em>Torá</em> refletiu-se numa figura secular como David Ben-Gurion quando afirmou “que a <em>Bíblia</em> constitui o sacrossanto título de propriedade dos ‘judeus’ com respeito à Palestina […] com uma genealogia de 3.500 anos “. Na <em>Torá</em> os mapas não são delimitados, mas sim populações com fronteiras difusas e dinâmicas, muito diferentes do controle exercido por um Estado-nação moderno. As fronteiras traçadas nos protectorados britânicos do século XX são aquelas que ambas as populações reivindicaram.</p> <p>Os políticos israelitas defenderam um duplo padrão ao exaltar as suas liberdades públicas, ao mesmo tempo que transgrediam os direitos na Palestina. A tolerância religiosa do Estado de Israel de natureza confessional foi destacada e o seu texto sagrado foi explorado para endossar as suas expansões territoriais. Movimentos de colonização como o movimento sionista exploraram a <em>Bíblia</em> como documento legitimador para as suas conquistas contra povos para os quais esse texto não tinha a mesma autoridade. A aplicação da cosmovisão desta obra a um povo que não a apreendeu como categoria de autoridade é um exemplo de imperialismo político e religioso.</p> <p>O general israelense Moshe Dayan, considerado um herói da guerra de 1967 em seu país, expressou o sonho imperial de um grande Israel em seu livro, <em>Um novo mapa, outras relações</em>, em 1969, cito: “Não abandonámos o nosso sonho e não esquecemos a nossa lição. Voltamos à montanha, ao berço do nosso povo, à herança do Patriarca, à terra dos Juízes e à força da Casa de David. Voltamos a Hebron (Al-Khalil) e Schem (Nablus), a Belém e Anatote, a Jericó e aos vaus do Jordão em Adam Hair.”</p> <p>O pensamento imperial israelita manteve a sua estratégia de “aliança minoritária” para chegar a acordo com grupos minoritários na região. A sua preferência no Médio Oriente não foi a preeminência árabe ou muçulmana, pelo contrário, procura uma área de diversidade étnica, religiosa e cultural; evitar a possibilidade do pan-arabismo ou de uma união do mundo árabe. Fortalecer diferenças como os persas, os turcos, os curdos, os judeus e os cristãos maronitas do Líbano; aventurar-se nos assuntos internos dos países árabes, fazendo acordos com as referidas minorias étnicas ou religiosas. Este pensamento expansionista está em linha com a expansão territorial e a expulsão da maioria dos palestinianos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia.</p> <p><strong>A luta palestina de gênero, classe e nacional</strong></p> <p>A resistência palestiniana recebeu influências estratégicas e ideológicas de modelos do terceiro mundo e de esquerda. Esses movimentos de independência, de revolução socialista ou de intransigência contra a interferência dos EUA, foram, em primeiro lugar, a Argélia, depois o Vietname, Cuba e a China. Embora estes países tivessem um padrão de não serem totalmente pró-soviéticos, a verdade é que se posicionaram no caminho oposto aos interesses americanos. Portanto, seu perfil estava mais relacionado à era da descolonização e ao chamado Terceiro Mundo. No entanto, a OLP explorou todo o seu potencial político e militar, dentro de certos limites.</p> <p>Ao mesmo tempo, o movimento não possuía paradigmas precedentes que pudessem ser efetivamente aplicáveis à sua realidade. Isto significa que estes modelos não se assemelhavam à situação palestina para aplicar os mesmos arquétipos de emancipação nacional. A concepção anterior do objectivo da independência – a eliminação da presença sionista da Palestina histórica – foi reformulada em 1969 com o conceito complementar de um “Estado democrático secular”, que substituiria o exclusivista das administrações israelitas.</p> <p>Desde 1967, os palestinos associam a sua luta ao que aconteceu no Vietname, na Argélia, em Cuba e na África negra. Esta inovação de perspectiva deveu-se tanto à ascensão de uma consciência política global como à luta universal contra o colonialismo e o imperialismo. A excessiva interferência das potências da área, somada às disputas geradas pela Guerra Fria – contexto regional e global – influenciaram a questão da Palestina. Portanto, devemos analisar até que ponto cada fator o fez. A nível internacional, os Estados Unidos, juntamente com Israel e, em menor medida, a Jordânia, desafiaram consistentemente o estabelecimento de um Estado palestiniano independente.</p> <p>O movimento palestino apresenta uma diversidade de abordagens e movimentos no campo político. O imaginário de gênero predominou nos discursos dos países, assim como a nação foi descrita como mulher. A pátria era imaginada como um corpo feminino fértil que poderia ser objeto da arbitrariedade dos invasores. Por um lado, as mulheres, através das suas funções biológicas, regeneram o Estado. Por outro lado, os homens são vistos como fundadores honorários da nação que se ajustam à honra das suas mulheres. Os corpos femininos trazem cidadãos ao mundo e geram a nação. Mães e viúvas carregam a bandeira que caiu nas mãos dos seus heróicos filhos e maridos. Os símbolos de género – corpos, vestuário e comportamento das mulheres – tornaram-se sinais substanciais das culturas nacionais.</p> <p>Do ponto de vista “ocidental”, existe a noção de que as mulheres palestinianas apareceram em cena com a chamada primeira Intifada. Porém, desde o início do século XX, lutaram junto com seu povo contra a colonização. No período de 1950 a 1989 ocorreu a ascensão do movimento de mulheres, o que levou à sua participação na rebelião generalizada de 1988-1992.</p> <p>O Congresso das Mulheres Árabes de 1929 em Jerusalém iniciou o seu activismo político numa organização específica, no contexto da luta nacionalista. As mulheres deixaram de preservar o tecido social para se tornarem principais atores políticos. Desde os acontecimentos de 1948 e 1967, a sociedade reorganizou as bases de um movimento de resistência popular. A partir daí, o activismo feminino modificou as imagens de género em que o combatente masculino era visto como o libertador da nação e um símbolo central na construção do nacionalismo palestiniano, como pode ser visto no cartaz em anexo.</p> <p>Da mesma forma, a União Geral das Mulheres Palestinas (GUPW), fundada em 1965, reuniu organizações de mulheres. Esta organização trabalhou com um duplo propósito tanto pelos direitos das mulheres como pela luta nacional e pela construção do Estado. Um grande número de estudos recentes enfoca esses aspectos.</p> <p>A participação em atividades de guerrilha foi a principal fonte de legitimidade política. A fida’i (combatente) Leila Khaled foi um símbolo da luta armada pela libertação da Palestina, membro da FPLP, apareceu na fotografia após o sequestro de um avião em 1969. O anel em seu dedo é feito de uma granada em gancho e uma bala. Esta mulher revolucionária tinha um perfil notório como militante palestiniana e chamou a atenção do público internacional em 1969. Como membro do Setembro Negro, nesse mesmo ano participou no sequestro de um voo que foi desviado para Damasco; e em 1970, ela o fez no sequestro múltiplo de quatro aviões, foi presa e libertada 28 dias depois em uma troca de prisioneiros.</p> <p>As mulheres têm um papel fundamental, como em todas as sociedades. Claro que há um debate se a libertação feminina ou nacional vem em primeiro lugar, mas numa tal ocupação e tentativa de limpeza étnica, mulheres, homens, adultos e crianças juntam-se à resistência, à violência e ao pacífico “existir é resistir”, em árabe <em>Sumud</em>.</p> <p>Em 1969, Leila Khaled tornou-se a primeira mulher no mundo a sequestrar um avião e a figura icónica da militância palestiniana. Os contrastes entre a sua feminilidade e a sua postura combativa atraíram a atenção mundial. A sua fotografia tirada nesse ano por Eddie Adams, com a cabeça envolta numa kufiya, quase abrindo um sorriso enquanto segurava a sua Kalashnikov, adquiriu um estatuto emblemático da resistência palestiniana. Essa imagem, difundida pelas agências de notícias internacionais, impulsionou-a a tornar-se um protótipo revolucionário, semelhante à imagem e representatividade de “Che” Guevara.</p> <p>A experiência e a visão dos palestinos variavam de acordo com as diferenças de classe, geração e região de origem. As histórias de identidade dos refugiados no Líbano e na Jordânia, na Síria e no interior, ou daqueles residentes em Israel, alimentaram-se umas às outras para unir cada visão de mundo específica. No entanto, a terra foi a componente por excelência, a nível simbólico e material, como denota o Dia da Terra, a figura do felahin, as lutas pelo direito ao regresso e a presença daquela forma do mapa representada nas suas manifestações culturais. Não se sentiam pertencentes aos países onde se refugiaram e assim mantinham a esperança de regressar às suas casas, como demonstra a guarda das suas antigas chaves.</p> <p>Os moradores dos campos e os quadros da resistência expressaram as nuances de como o local de origem é apreciado nas particularidades da preparação dos alimentos, sotaque, costumes, residência real e memórias locais. No segundo caso, a classe de origem – se possuía terras urbanas, rurais, ou não tinha terra – era educada ou analfabeta. A divisão de classes urbano/rural repetiu-se nos campos de residência, assim como a integração ou não na sociedade libanesa.</p> <p>Isto afectou tanto as relações dentro dos campos como, por exemplo, os casamentos. Em terceiro lugar, ainda existiam vestígios de atitudes políticas pré-Nakba na década de 1960, como a oposição aos partidos políticos em geral, ao contrário do caso dos palestinianos exilados noutras latitudes que não discutiremos aqui por razões de espaço.</p> <p>A crescente independência da política palestiniana nos territórios teve impacto na difícil relação com a Jordânia. Desde 1970, aquele reino e a OLP disputavam o direito de representar os habitantes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Nos campos de refugiados, durante as décadas de 1970 e 1980, criaram uma série de metáforas identitárias de experiências individuais e coletivas. Passaram por diferentes fases, o período de resistência de 1968 a 1982 (da invasão israelita à OLP no Líbano) e a fase subsequente de 1982 à intifada. As suas consequências estiveram ligadas à “ascensão e queda” da OLP e à dialética entre as populações do interior e da diáspora.</p> <p>Os refugiados palestinos na Cisjordânia rejeitaram o estereótipo das vítimas. Esta atitude e o direito ao regresso foram duas das referências mais importantes, assim como a organização social na vida quotidiana nos campos de refugiados. Os refugiados celebraram o seu estatuto, à medida que o movimento de resistência restaurava a sua identidade como palestinianos após duas décadas de alienação sob o rótulo de “refugiados”. A sua identidade e experiência foram consolidadas através do trabalho humanitário, da utilização de práticas espaciais e das ligações com os seus locais de origem.</p> <p>Nos campos, uma nova religiosidade proliferou entre os jovens: a oração e a frequência à mesquita, a invocação de Alá, o uso de certas roupas pelas mulheres. Este regresso pendular ao Islão no período posterior a 1982 formou uma opção de identidade crítica a um nacionalismo secular frustrado. Eles perceberam isso como uma reação à derrota de 1982, embora, embora o nível religioso da sua identidade tenha aumentado, a verdade é que a Palestina mudou na sua forma.</p> <p><strong>30 anos depois de Oslo</strong></p> <p>O interessante seria partir da educação e da ação global sobre Boicote, Desinvestimento e Sanções, BDS, além do rompimento das relações diplomáticas com Israel, gerando o desmantelamento do sistema de apartheid. Devemos diagnosticar para saber quais são as situações, dado o racismo estrutural aliado à colaboração e inserção de Israel no Complexo Industrial Militar dos Estados Unidos e da OTAN, além de ser o eixo do plano de “caos controlado” no Médio Oriente expandido. Leste, a questão é minar e enfraquecer esse apoio, o americano, o problema real e urgente.</p> <p>A realidade social e política palestiniana foi fracturada em três planos (alguns consideram quatro, com Jerusalém Oriental): na Cisjordânia e em Gaza, dentro de Israel e fora da Palestina histórica (refúgio e emigração). Estas três dimensões, embora tenham particularidades, não foram isoladas umas das outras e influenciaram-se mutuamente. Para os palestinos fazem parte da mesma realidade e qualquer palestiniano tem os seus familiares espalhados nestes três mundos. Por outras palavras, as três esferas da ocupação israelita da Palestina estão inter-relacionadas e são inseparáveis.</p> <p>Em primeiro lugar, a questão dos refugiados diz respeito aos que foram expulsos das suas aldeias e forçados ao exílio. Em segundo lugar, aqueles que permaneceram nos territórios palestinianos – duas décadas sob controlo jordano (Cisjordânia) ou egípcio (Faixa de Gaza) –, posteriormente ocupados por Israel em 1967. E em terceiro lugar, aqueles que continuaram dentro de Israel e receberam a cidadania israelita.</p> <p>Embora este último grupo possa ter aproveitado o facto de ser israelita política, social e economicamente, a verdade é que tiveram de suportar um regime semelhante ao apartheid porque não eram judeus, eram suspeitos de deslealdade ou eram vistos como uma quinta coluna palestina. De cento e quarenta mil em 1949 passaram para mais de um milhão e meio hoje (20% da população israelita).</p> <p>Sendo marginalizados, os palestinianos-israelenses reivindicaram a sua identidade palestina e uma política que liga o fim da discriminação e o acesso à plena cidadania em Israel com a resolução da questão geral. Ou seja, consideravam a sua situação relacionada com o conflito e pensavam que, após a sua resolução, o establishment judaico assumiria a sua integração em Israel.</p> <p>Os palestinos na Cisjordânia, em Gaza e em Israel estão unidos na sua luta pela sobrevivência, no sofrimento e na perda. Os membros da diáspora intensificaram o compromisso com a sua pátria e exigem uma voz na procura de uma solução. A percepção centra-se na ocupação israelita da Cisjordânia e de Gaza, e nos esforços palestinianos para estabelecer ali um Estado, sendo assim reduzida a uma das suas dimensões. Este empreendimento colonial europeu teve a particularidade de o sionismo não representar um Estado nos seus primórdios. Depois de 1948, teve um no seu confronto com a população indígena palestina e os seus vizinhos árabes.</p> <p>Uma representação tendenciosa tem sido uma comunidade tradicional e pré-moderna, que também foi incutida no resto dos palestinos pela maior parte da intelectualidade ocidental. Portanto, manteriam identidades múltiplas: israelitas, árabes, palestinianos, muçulmanos; compatíveis entre si, mas não isentos de tensões. A nova identidade judaica israelita apresentada como uma superação das suas culturas diaspóricas de origem e do seu caldeirão também não tem sido uma construção monolítica e linear.</p> <p>O caso dos palestinos é semelhante ao dos arménios no negacionismo. Portanto, os israelitas, nesse sentido, são semelhantes aos turcos e aos sul-africanos. No negacionismo turco, o <em>leitmotiv</em> era: um povo, uma raça, uma religião; isto é, “somos turcos, falamos turco e somos muçulmanos”. Ao mesmo tempo, no caso israelita, procurava-se a homogeneidade de um Estado Judeu.</p> <p>A ferramenta do paradigma colonial de ocupação e a analogia do <em>apartheid</em> contribuiriam para desbloquear o processo de paz e permitiriam mais um passo rumo a uma resolução. Um nacionalismo é opressivo (Israel), o outro é o nacionalismo dos oprimidos (Palestina). Eles são uma identidade nacional, apesar daqueles que a contradizem. É provavelmente um dos casos mais importantes de luta nacional, mas que, ao mesmo tempo, acaba por ser um dos mais controversos.</p> <p>Embora os palestinos tenham se formado na resistência, a sua especificidade ocorreu na diáspora, algo que, paradoxalmente, está relacionado com diversas diferenças com o caso israelense. Foram reconfigurados, foram exilados, mas não se tornaram jordanianos, nem sírios, nem libaneses. Por sua vez, eles se definiram como árabes (em certo ponto pan-árabes) e estão ligados a uma identidade muçulmana e foram oprimidos pelo Império Otomano.</p> <p>É uma nação, são árabes e ao mesmo tempo palestinos. Passaram de uma protonação a uma nação forjada, através da escolha de certos símbolos: a resistência, a OLP e a sua carta orgânica, o seu pedido de um Estado laico democrático. Eles têm uma identidade nacional diferente de outros árabes. Os árabes são, em certo sentido, uma nação, mas não se tornaram um Estado, apesar de tentativas como a da República Árabe Unida (UAR, 1958-1961), que foi reorganizada em determinados Estados-nação.</p> <p>Quando um palestiniano nasce num campo de refugiados no estrangeiro, ele ou ela é considerado palestiniano. Não são apenas uma nação sobreposta, assemelha-se à situação de um povo deslocado por um colono. Por sua vez, o palestino-israelense tem duas nacionalidades.</p> <p>O povo palestiniano continua a lutar pela sua autodeterminação, independentemente de ser possível a aplicação de uma solução binacional ou de dois Estados. Sem deixar de ver a situação de ocupação que se arrasta há décadas e aumenta continuamente, é uma possibilidade que as eleições marcadas para este ano possam ser reavivadas. Ao mesmo tempo, a aplicação do apartheid à sua população é reconhecida internacionalmente, mas isso ainda não modificou substancialmente a sua realidade.</p> <p>Entre as formas de resistência palestiniana e de solidariedade internacional para com a sua causa, encontramos a campanha BDS, Boicote, Desinvestimento e Sanções (relacionada com a campanha sul-africana), que se opôs às declarações da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, de rejeitar a assimilação entre judeofobia (anti -semitismo) como uma forma de racismo e anti-sionismo, como uma rejeição das políticas israelitas em relação aos palestinianos.</p> <p><strong>Reconfiguração do sistema mundial</strong></p> <p>A retirada dos Estados Unidos é visível em alguns aspectos, como a retirada do Afeganistão, ou a possível retirada do Iraque, mas ainda não podemos conjecturar como será o seu reajustamento para toda a região. O que podemos observar é uma mudança no cenário de intervenções militares que podem minar, de bases, de sanções econômicas como as contra o Irã, e de alianças como com Israel ou a Arábia Saudita, onde têm influenciado actores regionais e mobilizações populares. Isto não conseguiu evitar a destruição de vários países, da Líbia ao Afeganistão, com as terríveis consequências para as suas populações e para os refugiados que isso causou.</p> <p>Resta saber se os Estados Unidos desmantelam a máquina de guerra implantada no Médio Oriente devido à sua ligação ao apoio do dólar e porque ao mesmo tempo procuram intercalar força e consenso com os subimperialismos da Turquia, do Irã, Arábia Saudita mais o papel co-imperial de Israel; bem como intimidar potências rivais. Os últimos 20 anos deste novo imperialismo e intervenção direta estão separados do desdobramento chinês ao anunciar a Nova Rota da Seda em 2013, que inicia uma forma quase oposta de hegemonia em relação à região, num outro tipo e momento de desenvolvimento.</p> <p>Este novo cenário de caos sistêmico tem sido delineado desde a crise capitalista de 2008 e a proposta de “pivô asiático” de Obama, e com vários factos incontestáveis de deslocamento geopolítico. Um eixo triangular entre a Rússia, o Irã e a China que em 2013 se opôs às propostas dos EUA para bombardear a Síria. Em 2015, a Rússia envolveu-se de forma decisiva, com o apoio tácito da China.</p> <p>As mudanças que ocorreram e são visíveis na última década mostram que a “asianização” económica está a lutar pelo poder com dois representantes da tríade, a Europa Ocidental e o Japão, e por um declínio relativo americano em vários indicadores económicos. Os últimos movimentos tectônicos denotam a importância do Oceano Índico e do Pacífico, em comparação com a preeminência anterior do Atlântico; se olharmos, por exemplo, para os portos mais movimentados do mundo.</p> <p>Israel (a potência americana assegura-lhe uma “vantagem militar qualitativa” na região) juntamente com a Arábia Saudita (apoiante do petrodólar), sustentam as políticas anglo-americanas para a região. Estas estão resolvidas entre uma posição “globalista” que apoiaria a pacificação, e outra “americanista” que persiste na proposta de guerra, juntamente com a gestão da NATO e com o renascimento da QUAD (aliança entre Austrália, Japão, Índia e Estados Unidos ) e agora o AUKUS (Austrália, Reino Unido, EUA).</p> <p>O espaço pós-soviético é central para a competição global por áreas de influência e recursos. Sob a OTAN, a aliança anglo-americana procura cercar militarmente a URSS e depois a Rússia. Em qualquer caso, o atolamento dos Estados Unidos na Ásia Central e no Médio Oriente demonstraria que a supremacia militar não é consistente com os resultados das intervenções.</p> <p>Isto é um reflexo da reconfiguração do sistema mundial. Três factores na mesa global contextualizam este novo derramamento de sangue. A influência dos Estados Unidos e o seu relativo declínio no Médio Oriente, mais o desgaste do conflito na Ucrânia, o poder da China e a sua aliança com a Rússia. Influência dos EUA e o seu declínio relativo na região e no Médio Oriente. É por isso que é crucial compreender a importância de analisar o contexto regional e as implicações geopolíticas desta questão.</p> <p>Embora esta violência seja cíclica, mostra como o mundo mudou, especialmente desde 2013-2014. Enfrentamos uma crise de longa duração nos Estados Unidos, um declínio relativo em vários aspectos económicos, ao mesmo tempo que mantém a primazia financeira e tecnológica, a sua hegemonia global está a ser questionada. Orienta-se com o “pivô asiático” desde Obama em 2011, anterior à Iniciativa Cinturão e Rota de 2013, e com os freios da Rússia e da China à destruição iminente da Síria, que teria sido o corolário da destruição do Iraque (1991). e 2003). ), Afeganistão (2001), Líbia (2011). Por isso, recua em alguns locais-chave como o Médio Oriente, onde a China e a Rússia estão a avançar.</p> <p>Os Estados Unidos, na sua estratégia de não ceder ainda mais a sua primazia, têm utilizado a sua expansão e intervenção militar. Três áreas de tensão emergem como as principais e uma quarta, a Europa de Leste com a Ucrânia-Rússia e o chamado Oriente Médio, Israel-Irã, e Taiwan na Ásia-Pacífico com a China, além da área do Sahel altamente revolucionada pela movimentos emancipatórios ou poderíamos classificar uma “segunda onda de independência”, pelo menos na África Atlântica.</p> <p>O padrão de violência simbólica e material em todo o mundo, especialmente desde 1945, aumentou em 2001, com o que chamaram de “guerra contra o terrorismo”. Agora tenta-se renovar esta reconfiguração do sistema mundial, com a ascensão do poder chinês acompanhada pela aliança estratégica com a Rússia, à qual o Irã adere.</p> <p>A Ucrânia como eixo de confronto está mais desgastada. Acrescenta-se um incipiente processo de desdolarização devido ao planeamento neste sentido por parte das grandes potências emergentes que procuram desta forma equilibrar o poder mundial e evitar a arma das sanções económicas dos EUA como aconteceu com a Rússia ou o Irã. O sistema mundial também é reconfigurado pelos dez anos da “Faixa e Rota”. Temos eixos de tensão nessas rotas e na reconciliação entre a Arábia Saudita e o Irã. É um erro analítico observar apenas o que acontece na Palestina-Israel e dissociá-lo do seu contexto regional e global.</p> <p>A actual explosão sistémica é a expansão dos BRICS+ (mais as eleições dos EUA em 2024) para onze países: Egipto, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Irã (mais Argentina). Constituem um novo eixo de abordagem à Eurásia, de aumento da produção petrolífera e de passagens geoestratégicas globais que atravessam a região como o Canal de Suez, o Estreito de Bab el-Mandeb e o Estreito de Ormuz. Com exceção da Rússia, são países colonizados ou semicolônias das potências do G-7 nos últimos séculos.</p> <p><strong>Martín Martinelli</strong><em> é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidad Nacional de Luján (Argentina)</em>.</p> https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/announcement/view/185 Tue, 19 Mar 2024 13:36:50 -0300 PRORROGADA Chamada para edição temática: O sono e os sonhos: saúde mental e vida social https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/announcement/view/182 <p>A revista <em>Tensões Mundiais </em>selecionará artigos para o dossiê temático “<strong>O sono e os sonhos: saúde mental e vida social</strong>”. As propostas devem ser submetidas até <strong>25/05/2024</strong> e irão compor a edição de número 44. O objetivo dessa edição é fomentar o debate acadêmico e/ou de movimentos sociais, com foco na abordagem interdisciplinar e relacional de conceitos tais como: <em>sono, sonho, saúde mental </em>e <em>vida social. </em></p> <p>A referida edição assume como problemática a interpretação dos elementos que condicionam a relação entre vida social e saúde mental, considerando o atual quadro de tensões que marca esta relação, assim como alternativas que contribuam para sua transformação. Nesse contexto, o sono e os sonhos revelam-se não só manifestações, mas também indicam formas de elaboração do equilíbrio ou do adoecimento mental, individual e coletivo.</p> <p>Assim, o sono pode ser compreendido como a última fronteira fisiológica não colonizada pela lógica produtivista do capitalismo neoliberal (Crary, 2014). Um mundo cujo ideal de atividade laboral pode ser resumido pela fórmula 24h / 7 dias por semana, a constante compressão do tempo cronometrado por demandas cotidianas cumulativas acaba por configurar-se como uma “sociedade do cansaço” (Chul Han, 2015). As práticas ligadas ao sono (a exemplo do sonhar) vão sendo paulatinamente minadas, quantitativa e qualitativamente. Dorme-se menos tempo um sono de pior qualidade, cuja superficialidade abriga sonhos facilmente esquecidos frente ao intenso ritmo das mentes em vigília.</p> <p>A relação entre sono/sonho e vida social constitui um domínio disciplinar interpretativo recente e uma contribuição absolutamente inovadora, considerando que essa temática, até muito recentemente, esteve adstrita a campos como aqueles da psicologia e da psicanálise. A proposta conceitual e metodológica de uma interpretação sociológica dos sonhos tem sido capitaneada pelo sociólogo francês Bernard Lahire, que superando as análises dos sonhos mais centradas no indivíduo e em sua psique, tem teorizado a partir da contribuição do sono e dos sonhos como elementos constitutivos e construtores de relações sociais.</p> <p>Saber narrar e compartilhar os próprios sonhos representa uma característica bastante recorrente e valorizada entre grandes líderes, pajés e xamãs de diferentes povos indígenas. Por isso, nas comunidades tradicionais, saber sonhar significa não só dominar o acesso à sabedoria de antepassados, mas também antever futuros possíveis. Nas palavras de Ailton Krenak (2020, p. 37): “experiencio o sentido do sonho como instituição que prepara as pessoas para se relacionarem com o cotidiano”. Como dimensão decisiva na vida de diferentes povos ameríndios, os sonhos são concebidos como um acontecimento. Por isso, não se trata de meros simbolismos ou representações, mas de vida experimentada, como propõem Krenak, Davi Kopenawa e Hanna Limulja. Aprender com esses povos implica em conferir ao sonho o status de potente ferramenta onto-epistêmica. Esta permite superar o paradoxo sistêmico do modo de produção capitalista, o qual coloca em xeque a própria vida no planeta. Nesse sentido, o sonho na cosmovisão das comunidades tradicionais assume centralidade na construção de outros mundos possíveis. Do mesmo modo, sob uma perspectiva crítica e transdisciplinar, o sonhar funde de forma inequívoca memórias, emoções e imaginação, relativizando a aderência a realidades naturalizadas, em função da abertura a outro real.</p> <p>Assim, ao aproximar as áreas de ciências humanas e da saúde para a interpretação de uma multiplicidade de sentidos que se encontra ao abrigo do sonhar, este dossiê busca selecionar artigos inéditos que subsidiem a compreensão e a intervenção nos modos de sofrimento mental coletivo, sobretudo, aqueles manifestos no recente contexto traumático configurado mundialmente pela eclosão da pandemia de COVID-19. Sendo assim, a pergunta que norteia a organização desta edição temática de <em>Tensões Mundiais </em>é: <strong>qual a contribuição de novas interpretações socioantropológicas do sono e dos sonhos para a saúde mental e a vida social? </strong></p> <p>Nesse sentido, <em>Tensões Mundiais </em>convida para participar dessa edição temática <strong>artigos </strong>que abordem os seguintes eixos:</p> <ul> <li>Dimensão epistemológica dos sonhos na interpretação da vida social;</li> <li>As relações entre sonho, religião e espiritualidade profética;</li> <li>Aproximações entre a singularidade da psique individualizada e os condicionantes culturais;</li> <li>A dimensão utópica que emerge da ligação entre arte e sonho;</li> <li>A perspectiva antropológica e das culturas tradicionais quanto ao papel dos sonhos na vida social.</li> </ul> <p>Na composição desse dossiê, serão igualmente aceitas <strong>resenhas </strong>de livros lançados nos últimos dois anos e <strong>traduções inéditas </strong>de textos clássicos acerca dos estudos sobre os sonhos e o sono, a partir de perspectivas socioantropológicas e de pensadores decoloniais.</p> <p>Os trabalhos devem ser submetidos em Português, Francês, Inglês e/ou Espanhol no sistema online da revista <em>Tensões Mundiais </em>(disponível abaixo) até <strong>25/05/2024</strong>.</p> <p>Os <strong>arquivos </strong>submetidos para essa chamada devem ser <strong>identificados pelo código [#TMSONHO] </strong>em seu título, como também necessitam estar de acordo com as diretrizes para autores (disponíveis abaixo).</p> <p>Sistema online de <em>Tensões Mundiais</em>:</p> <p>&lt;https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais&gt;</p> <p>Diretrizes de <em>Tensões Mundiais </em>para autores:</p> <p>&lt;https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/about/submissions&gt;.</p> <p>Para contatar os coordenadores desta edição ou o comitê editorial de <em>Tensões Mundiais</em>, escreva seu e-mail para:</p> <p> </p> <p>Kadma Marques Rodrigues: Universidade Estadual do Ceará (UECE)</p> <p>Formação: Socióloga (<a href="mailto:kadma.rodrigues@uece.br">kadma.rodrigues@uece.br</a>)</p> <p>Philippe Martin: Université Lumière Lyon 2 (Lyon 2)</p> <p>Formação: Historiador (<a href="mailto:philippe.martin@univ-lyon2.fr">philippe.martin@univ-lyon2.fr</a>)</p> <p>Gabriel Peters: Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)</p> <p>Formação: Sociólogo (<a href="mailto:gabrielpeters@hotmail.com">gabrielpeters@hotmail.com</a>)</p> https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/announcement/view/182 Tue, 20 Feb 2024 20:56:39 -0300 A origem da violência em Gaza está na ideologia racista da eliminação dos nativos, por Ilan Pappé https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/announcement/view/181 <p>O texto a seguir é uma transcrição da palestra proferida pelo historiador israelense Ilan Pappé na Universidade de Berkeley, Califórnia, em 19 de outubro de 2023 e publicada pela revista <a href="https://ctxt.es/es/20231101/Firmas/44652/ilan-pappe-israel-conferencia-charla-gaza-colonial-exterminio-apartheid-racismo-palestina-cisjordania.htm" target="_blank" rel="noopener">CTXT</a> em 7 de novembro de 2023 e traduzida para o português pelo <a href="https://www.ihu.unisinos.br/categorias/634026-a-origem-da-violencia-em-gaza-esta-na-ideologia-racista-da-eliminacao-dos-nativos-artigo-de-ilan-pappe" target="_blank" rel="noopener">IHU</a> em 9 de novembro de 2023.</p> <p>Pappé é diretor do Centro Europeu de Estudos Palestinos da Universidade de Exeter e autor de vários livros em onde ele trata da questão da ocupação israelense.</p> <p>Clique para assistir à <a href="https://www.youtube.com/live/1OcjOP8iUCU?app=desktop&amp;si=9MCRbK-dE8U6-7rC&amp;t=506" target="_blank" rel="noopener">Palestra no Youtube</a></p> <p> </p> <p class="has-medium-font-size"><strong>A origem da violência em Gaza está na ideologia racista da eliminação dos nativos</strong></p> <p class="has-medium-font-size"><strong>por Ilan Pappé</strong></p> <p> </p> <p>Muito obrigado por nos dedicar o seu tempo neste momento crucial e doloroso da história de Israel e da Palestina. Antes de 7 de outubro de 2023, a maior parte da sociedade judaica israelense observava com algum medo e apreensão a situação criada durante as últimas semanas deste mês, e o principal debate em Israel era sobre o seu futuro. As manifestações semanais de centenas de milhares de israelenses faziam parte de um movimento de protesto contra a tentativa do governo de alterar a lei constitucional em Israel e de criar um novo sistema político através do qual os poderes políticos teriam controle total sobre o sistema judicial e a esfera pública seria muito mais controlada por grupos judaicos messiânicos e religiosos.</p> <p>Num dos meus artigos descrevo essa luta específica pela identidade de Israel – que foi a questão principal até 07/10/2023 – como uma luta entre o Estado da Judeia e o Estado de Israel. O Estado da Judeia foi estabelecido por colonos judeus na Cisjordânia e foi uma combinação de judaísmo messiânico, fanatismo sionista e racismo que se tornou uma espécie de estrutura de poder que acabou muito mais visível e importante nos últimos anos – especialmente sob o governo de Netanyahu – e que ele estava prestes a impor o seu modo de vida ao resto de Israel, para além do que chamamos de Judeia e, num certo sentido, para além da Cisjordânia ou do espaço judaico na Cisjordânia. O Estado de Israel ou, se preferirem, a cidade de Tel Aviv, o seu maior expoente, levantou-se contra ele.</p> <p>A ideia de que Israel é pluralista, democrático, secular – e, mais importante ainda, ocidental ou europeu – e que está a lutar pela sua vida contra o Estado da Judeia parecia ser o foco do que poderíamos chamar, se não uma verdadeira guerra civil, pelo menos uma guerra civil fria, mas certamente uma guerra cultural entre judeus israelenses.</p> <p>Quando alguns de nós perguntamos a ambos os lados deste conflito interno israelense se, por exemplo, a ocupação da Cisjordânia não deveria fazer parte do debate sobre o futuro de Israel, disseram-nos que não, que nenhum dos lados deveria mencionar a ocupação, o que é irrelevante para o futuro de Israel. Na verdade, qualquer pessoa que tentasse introduzir a questão da ocupação nos protestos semanais contra a reforma judicial ou “revolução judicial”, como gostam de chamar, foi convidada a sair e não ser vista com o maior grupo de manifestantes a acenar com a bandeira israelense. Sem dúvida, se alguém trouxesse a bandeira palestina para aquela manifestação, seria espancado e expulso, tal como se alguém mencionasse o fato de que talvez o futuro de Israel esteja também nas condições e na situação dos quase dois milhões de cidadãos palestinos em Israel, que no último ano passou por um processo de perseguição por parte de gangues criminosas que aterrorizam as suas vidas.</p> <p>Em todo Israel existem gangues criminosas fortemente armadas – muitas delas formadas por ex-colaboradores de Israel na Cisjordânia e na Faixa de Gaza que foram retirados destes territórios após o Acordo de Oslo e são totalmente imunes a qualquer tipo de perseguição policial ou ação criminosa. O que significa que, como muitos de vocês saberão, os palestinos que vivem em Israel, quero dizer, os cidadãos israelenses, têm medo de sair à noite devido à nova realidade nas suas ruas e espaços. Nem foi permitido que esta questão fizesse parte do debate público sobre o futuro de Israel.</p> <p>Se tentássemos mencionar Jerusalém Oriental e a limpeza étnica dos bairros árabes de Jerusalém, os manifestantes e os seus líderes declaravam, mais uma vez, que esta não era uma questão importante. Ou, como disse Amira Hass, a corajosa jornalista do Haaretz, no que diz respeito aos israelenses, até 07/10/2023, a ocupação não existia, o que significava que já não existia como um problema. Está resolvido; há uma enorme presença de assentamentos judaicos na Cisjordânia, ninguém precisa mais se preocupar com isso. Na verdade, nas últimas quatro campanhas eleitorais em Israel, e houve uma todos os anos, ninguém mencionou tal questão ou a própria questão da ocupação palestina. Os israelenses não foram convidados a votar nesta questão porque já não existia como questão. Se alguém mencionasse a Faixa de Gaza e se voltasse para falar sobre o cerco, responderia: do que você está falando?</p> <p>Era uma questão que já não preocupava ninguém, tal como o massacre diário de palestinos na Cisjordânia ao longo dos últimos dois anos. Mas a invasão constante e recorrente de Al-Aqsa não passa despercebida, e o fato de as fracas autoridades palestinas serem incapazes de proteger seu povo da violência levada a cabo pelos colonos, pelo exército israelense e pela polícia fronteiriça israelense, não significa que não há grupos dispostos a defender os palestinos, não só na Faixa de Gaza, mas também noutras partes da Palestina histórica. Isto foi comunicado repetidas vezes ao público israelense, aos políticos, aos chefes do exército e dos serviços secretos israelenses, mas todos afirmaram que não havia problema. O único problema era a reforma jurídica, quer gostássemos ou não.</p> <p>E ficou muito claro por que todas essas outras questões não foram abordadas. Porque, em essência, o que tivemos em Israel foi uma luta entre duas formas de apartheid. Por um lado, houve o apartheid israelense secular, no qual os judeus, sem dúvida, desfrutam da vida numa democracia plural, de estilo ocidental. Por outro lado, havia a versão oposta do apartheid, o messiânico, o religioso, o teocrático. Portanto, a luta era uma questão judaica interna sobre o tipo de vida judaica na esfera pública, sem qualquer referência às vidas dos palestinos, quer fossem palestinos sujeitos à ocupação na Cisjordânia, ao cerco na Faixa de Gaza, ou a uma política discriminatória. Sistema dentro de Israel, para não mencionar os muitos milhões de refugiados palestinos, tudo isto não existia.</p> <p>Na manhã de 7 de outubro, tudo isso explodiu na cara dos israelenses. E agora existe a ilusão de ótica de que, devido ao choque que Israel sem dúvida sofreu naquela manhã, todas estas fissuras no edifício sionista desapareceram porque o ataque do Hamas foi tão brutal, tão devastador, que todos os debates internos foram esquecidos, e todos estão unidos em torno do exército e do seu atual plano de invadir a Faixa de Gaza e iniciar o que já estava em curso: as políticas genocidas no terreno. Penso que é uma ilusão de ótica que o conflito interno israelense não vá desaparecer. Não sei quando, mas estará de volta. No entanto, o mais importante é que, como ativistas, como acadêmicos, qualquer pessoa que, de uma forma ou de outra, esteja relacionada com a Palestina e com a luta palestina, independentemente de como entendemos e abordamos os acontecimentos de 7 de outubro de um ponto de vista humano e estratégico, está à margem. Moralmente, seja como for, não caiamos na armadilha de descontextualizar e eliminar a perspectiva histórica destes acontecimentos – e parece que há muitas pessoas boas neste país que estão caindo nisso. Isso é algo que não vai mudar nas próximas semanas. A realidade básica no terreno permanece a mesma que existia antes de 7 de outubro.</p> <p>O povo palestino está imerso numa luta pela libertação, provavelmente desde 1929. É uma luta contra os seus colonizadores e, como qualquer luta anticolonial, tem os seus altos e baixos, os seus momentos de glória e os seus momentos difíceis de violência. A descolonização não é um processo farmacêutico estéril, é um assunto confuso. E quanto mais durar o colonialismo e a opressão, maior será a probabilidade de o surto ser violento e desesperador em muitos aspectos. É extremamente importante lembrar às pessoas a história das rebeliões de escravos neste país e como elas terminaram com as revoltas dos nativos americanos, as rebeliões dos argelinos contra os colonos na Argélia, o massacre de Oran durante a luta do ELN (Exército de Libertação Nacional) para a libertação. Às vezes podemos questionar algumas ideias estratégicas, podemos ter momentos de preocupação, e com razão, com a forma como as coisas estão sendo feitas. Contudo, se não for descontextualizada, se a perspectiva histórica do próprio acontecimento não for eliminada, o compasso moral nunca se perde.</p> <p>Parece que estamos a lutar contra uma cobertura típica – tanto da comunicação social como do mundo acadêmico deste país, do Ocidente e do hemisfério norte em geral – que tem a capacidade de tratar um acontecimento como se não tivesse história ou consequências. Mesmo os relatos sobre o festival que foi atacado em 7 de outubro não mencionam o fato de se tratar de um festival sobre amor e paz: a um quilômetro e meio do gueto de Gaza, as pessoas celebravam o amor e a paz enquanto a população de Gaza era submetida a um dos cercos mais brutais da história da humanidade, que já dura mais de 15 anos. Os israelenses decidem quantas calorias entram na Faixa de Gaza, quem entra e quem sai, e mantêm dois milhões de pessoas na maior prisão ao ar livre do planeta.</p> <p>Todos estes contextos nos permitem navegar com moralidade sem perder o compasso. No entanto, muito mais importante do que o contexto imediato e mesmo o contexto do cerco – e é nisso que gostaria de me concentrar hoje – é o fato de que um dos nossos maiores desafios como ativistas palestinos, ou estudiosos palestinos empenhados, é que nós não podemos desafiar décadas de propaganda e invenção, confrontar essa narrativa com frases curtas. Acho que esse é o nosso principal problema. Precisamos de espaço e tempo para explicar a realidade face ao enorme número de canais, fontes de informação e instituições culturais que projetaram uma imagem e análise falsa e inventada da Palestina, que foi construída ao longo dos anos com a ajuda do mundo acadêmico, com a imprensa, com Hollywood e séries de televisão etc.</p> <p>Tudo isso influencia a mente e as emoções das pessoas e cria uma certa história que não pode ser questionada com uma única frase. Não pode nem sequer ser desafiado apenas com o sentido de justiça, mas com um sentido de justiça baseado num profundo conhecimento da história, com uma análise profunda e precisa da realidade através do uso de uma linguagem adequada, porque aquela que usam até as forças liberais, chamadas progressistas, é uma linguagem que imuniza Israel e não permite que a luta anticolonial palestina seja justificada, aceita e legitimada. E, sabemos, no panteão da luta anticolonial, no qual muitas pessoas colocariam muitos heróis – de Nelson Mandela a Gandhi e outros líderes importantes do movimento de libertação – não encontraremos nenhum palestino. Serão sempre tratados como terroristas, quando na essência se trata de um movimento anticolonial. E para usar a linguagem adequada, conhecer a história do lugar e fazer uma análise correta, é preciso, como disse, espaço; não podemos vir e dizer a alguém: “você está errado e eu estou certo”. E é um enorme desafio para todos nós num momento como o que vivemos hoje nos Estados Unidos, por exemplo, onde parece haver um apoio incondicional a Israel e uma posição hipócrita face ao sofrimento dos israelenses que não foi demonstrado ao sofrimento dos palestinos em nenhum momento da história da Palestina.</p> <p>As lições de história, por assim dizer, são o antídoto para remover a perspectiva histórica dos acontecimentos de 7 de outubro e daqueles que se desenrolam hoje diante dos nossos olhos – e provavelmente nas próximas semanas, se não meses. O contexto histórico tem dois níveis, dois pilares básicos nos quais o campo acadêmico ou a mídia devem se apoiar e que considero muito importantes para quem participa de debates públicos de forma individual ou institucional. Uma delas é nunca deixar de insistir numa definição precisa do sionismo, isto é muito importante: nenhuma discussão sobre o que acontece hoje em Israel ou na Palestina deve ser permitida sem falar sobre o sionismo. Israel e os seus apoiadores investiram muito esforço em equiparar o antissionismo ao antissemitismo, de modo que mencionar a palavra “sionismo” é trilhar o terreno perigoso de ser considerado antissemita e, portanto, será silenciado. Porém, isso não significa que esta não seja a única forma correta de começar a história, que começa com uma ideologia racista e muito dura. O sionismo pertence à genealogia do racismo, não à história dos movimentos de libertação (que é como é ensinado na maioria das universidades americanas) nem à história dos movimentos nacionais (que é como é ensinado na maior parte do hemisfério norte ou onde quer que a mídia ocidental fale ou cubra). Não, pertence à história do racismo, que não era originalmente uma ideologia, mas que se manifestou como tal na terra da Palestina.</p> <p>E este racismo faz parte da natureza colonialista do movimento sionista, que não é excepcional e que também conhecemos neste país de europeus que não foram aceitos como tal, que foram expulsos da Europa e tiveram de encontrar um lugar diferente. E encontraram países onde viviam outros povos e, como disse o falecido Patrick Wolf, nesse encontro foi acionada a lógica da eliminação do nativo, no momento em que esses colonos encontraram os indígenas. E isso também é verdade no caso da Palestina. As políticas de eliminação fazem parte do DNA sionista desde o início do movimento, no fim do século 19. Para colocar a questão em palavras menos acadêmicas, queriam o máximo de Palestina possível com o menor número possível de palestinos. Sempre houve dimensões demográficas e geográficas, a da população e a do espaço: quanto mais espaço se tem, menos se quer a população indígena nele.</p> <p>As políticas de eliminação podem ser genocídio, limpeza étnica ou apartheid. Eles assumem formas diferentes em locais diferentes ou no mesmo local, dependendo da capacidade, das circunstâncias históricas e da situação. No entanto, o que está acontecendo em Gaza não pode ser separado destas políticas israelenses de eliminação dos nativos, que têm a sua origem no pensamento sionista – nos desenhos dos pintores sionistas, na escrita dos intelectuais sionistas –, e que na década de 1930 se tornaram uma estratégia que foi implementada pela primeira vez em 1948, com a limpeza étnica que culminou com a expulsão de metade dos palestinos e a destruição de metade das cidades da Palestina. A propósito, muitas cidades israelenses foram construídas sobre as ruínas delas; alguns kibutzim que foram ocupados pelo Hamas durante algumas horas foram construídos sobre as ruínas dessas aldeias palestinas de 1948, e um número considerável de palestinos que entraram nos kibutzim eram refugiados de terceira geração dessas mesmas aldeias destruídas não muito longe de Gaza. Isso também faz parte da história. Não estou justificando o que foi feito, mas, sim, tendo oferecer um contexto histórico, sem o qual a origem da violência não pode ser alcançada e apenas os seus sintomas podem ser abordados. Devemos ir à origem da violência, que é uma certa ideologia racista que, na sua essência, é a ideia da eliminação do indígena e, como digo, não é algo exclusivo do sionismo.</p> <p>Houve outros movimentos coloniais europeus que foram, sem dúvida, motivados e inspirados pela ideia da eliminação do nativo. Portanto, se olharmos essa história de forma superficial, inferimos que o que é realmente importante em um movimento ideológico motivado pela ideia de possuir o máximo possível do novo território com o menor número possível de seu povo nativo é o período histórico em que foi concebido e foram implementadas as suas políticas de eliminação. Agora, se estas políticas de eliminação forem implementadas no século 19, como foi feito nos Estados Unidos, estamos falando de um mundo bastante indiferente ao colonialismo, ao racismo e a outros direitos humanos ou direitos civis coletivos. No entanto, se pararmos por um minuto para pensar, percebemos que isso foi feito depois da Segunda Guerra Mundial, ano em que foi promulgada a Declaração dos Direitos Humanos que o hemisfério norte tanto se orgulhava de mostrar ao mundo que já tínhamos os fundamentos morais a garantir que o assassinato em massa de pessoas e o racismo que vimos em tantos lugares seriam erradicados, porque havia um consenso moral. Quando percebemos que, nesse mesmo ano, a África do Sul promulgou a lei do apartheid e Israel realizou a limpeza étnica da Palestina, começamos a compreender a mensagem que, em 1948, tanto o regime do apartheid recebeu na África do Sul como, mais importante ainda, o Estado sionista pela comunidade internacional: sim, anunciamos com orgulho a Declaração dos Direitos Humanos, mas também lhes dizemos que ela não se lhes aplica.</p> <p>A mensagem para o mundo era que a limpeza étnica da Palestina era aceitável principalmente por uma razão – tratava-se de propaganda, não creio que fosse a verdadeira razão – que era, como disse um intelectual americano, tolerar uma pequena injustiça contra corrigir uma injustiça muito mais antiga. Especificamente, os palestinos tiveram de compensar os judeus por mil anos de antissemitismo europeu e cristão. O acordo era muito claro e é por isso que Israel foi o primeiro Estado a reconhecer uma nova Alemanha. As pessoas na Europa e no Ocidente estavam muito hesitantes em aceitar a Alemanha Ocidental como membro das nações civilizadas, tão poucos anos depois do regime nazista. Israel afirmou, e não com razão, representar tanto os sobreviventes como as vítimas do Holocausto. Como os mais altos representantes do Holocausto, os israelenses disseram: reconheceremos uma nova Alemanha e, em troca, queremos a não interferência do Ocidente naquilo que estamos a fazer na Palestina. Esperava-se que Israel fosse pelo menos o terceiro país a reconhecer uma nova Alemanha, e não o primeiro. Mas chegar a este acordo foi muito importante para eles. Envolveu também que a nova Alemanha fornecesse a Israel uma enorme ajuda financeira que ajudou a construir o moderno exército israelense no início da década de 1950.</p> <p>Agora, uma vez que a mensagem enviada ao mundo foi que, no caso do Estado de Israel, a limpeza étnica era um método aceitável de estratégia de segurança nacional, não é surpreendente que a limpeza étnica tenha continuado. Israel expulsou 360 mil pessoas entre 1948 e 1967 dentro de Israel, Israel expulsou 300 mil palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza durante a guerra de junho de 1967. De 1967 até hoje, Israel expulsou de Gaza quase 700 mil palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. E enquanto falamos, Israel continua a limpeza étnica em locais como Maghazi, Gaza, no sul, nas montanhas de Hebron, na área da Grande Jerusalém e noutros locais da Palestina. A limpeza étnica tornou-se o DNA da política israelense em relação aos palestinos, empregando centenas de milhares de pessoas para levá-la a cabo, porque não se trata de limpezas étnicas massivas como em 1948, mas sim de uma limpeza étnica gradual. Às vezes é a expulsão de uma pessoa ou de uma família, às vezes é o encerramento de uma cidade ou o cerco à Faixa de Gaza, o que é também uma forma de limpeza étnica, porque se criarmos o gueto de Gaza, não temos de incluir esses dois milhões de palestinos no equilíbrio demográfico de árabes e judeus, porque estes palestinos não têm palavra a dizer sobre o futuro da Palestina histórica.</p> <p>Este é o único pilar histórico necessário para responder quando alguém nos diz que se agitarmos a bandeira palestina estaremos apoiando o terrorismo ou a usar aquela linguagem vil que as pessoas agora usam contra os palestinos. Se as pessoas comparam o que aconteceu na manhã de 7 de outubro com o Holocausto – e assim deturpam totalmente o Holocausto, a sua memória – ou não o compreendem ou não sabem o que estão dizendo. Mas mesmo que insistam e tentem dar palestras sobre moralidade, é muito importante situar este acontecimento específico na história mais ampla da Palestina moderna, e na história particular do cerco desumano a dois milhões de pessoas em Gaza, que começou em 2007 – provavelmente o maior período de sofrimento que um número tão grande de pessoas já sofreu em termos de alimentação, água, liberdade de circulação e outras necessidades básicas da vida – e que, em 2020, levou as Nações Unidas a considerar que a vida na Faixa de Gaza é insustentável para a saúde de seres humanos. Há três anos pensavam que já tínhamos ultrapassado a linha vermelha em Gaza, por isso não se surpreendam quando as pessoas transbordarem: há indignação, há vingança, há violência, claro que há.</p> <p>O mesmo aconteceu com as rebeliões dos escravos, dos indígenas americanos, dos povos colonizados da Índia ao Norte de África. A luta anticolonial, como já disse antes, não é algo para Quakers e pacifistas. Pode ser muito violento ou muito pacífico, e depende em grande parte de até que ponto o colonizador, o responsável pela limpeza étnica, está disposto a aceitar o fato de que as pessoas que colonizaram ou oprimiram não irão desaparecer e não irão abandonar sua luta. Quanto mais cedo compreenderem isto, maior será a probabilidade de haver uma transformação muito mais pacífica de uma realidade colonialista para uma realidade pós-colonialista. Se você se recusar a entendê-lo, isso o atingirá repetidamente na cara, e o dia 7 de outubro não será o último momento dessa circunstância.</p> <p>No entanto, há também outro pilar histórico no qual eu gostaria de me concentrar. É muito importante porque em todo o discurso que acompanhou a cobertura dos meios de comunicação social e dos políticos deste país, e do Ocidente em geral, foi muito fácil perceber como tendem a generalizar sobre os palestinos. Já ouvimos isso antes sobre os muçulmanos em geral depois do 11 de Setembro, contra qualquer pessoa que ousasse desafiar impérios durante o período colonialista. Não há nada de novo, mas é importante lembrar às pessoas que o sionismo foi um desastre que destruiu uma Palestina que teria sido diferente sem o sionismo. É muito importante lembrar às pessoas como era a Palestina antes de 1948: um lugar onde coexistiam muçulmanos, cristãos e judeus, quando a coexistência não era uma ideia imaginária de viver e deixar viver, mas era uma forma genuína de viver juntos. Não devemos idealizá-lo, claro que teve as suas tensões e os seus momentos de crise, mas foi um mosaico de vida que, particularmente na Palestina, permitiu às pessoas desfrutar também do que a terra oferecia, algo que hoje não existe, como para por exemplo, abundância de água.</p> <p>Só as pessoas que se lembram da Palestina anterior a 1948 sabem que todas as aldeias palestinas tinham um riacho de água doce. Aquela fábula sionista que o presidente da Comissão Europeia acaba de repetir ao afirmar que o sionismo fez florescer o deserto é uma invenção tremenda. Em muitos lugares, o sionismo transformou um país próspero num deserto. Isto deve ser lembrado, mas só poderá ser feito se, com a ajuda de historiadores, a Palestina pré-1948 for reconstruída em termos de relações humanas e de ecologia; a ligação entre os palestinos e as ervas, por exemplo, na natureza que o sionismo destruiu e que fazia parte da qualidade de vida que os palestinos tinham. Ou, como disse o falecido Emil Habibi: “Quando eu morava na rua Abbas, em Haifa, antes de 1948, não sabia quem era cristão ou muçulmano na minha rua”. E creio que não é uma mera questão nostálgica; se quiserem, é uma história alternativa, no sentido de que havia a possibilidade de uma Palestina diferente.</p> <p>E nessa história devemos também incluir o fato de que o movimento nacional anticolonial palestino, desde o momento em que o sionismo pôs os pés na Palestina histórica, foi fiel a dois princípios – e isto está tão bem documentado que não há necessidade de fazer muito esforço para encontrá-lo, que comunicaram aos americanos porque foram eles que trouxeram estes princípios ao mundo árabe através do presidente Woodrow Wilson, especialmente ao Mediterrâneo oriental em 1919, e mais tarde foram as Nações Unidas que, de alguma forma, insistiram nestes começos. Um dos princípios era o direito à autodeterminação dos povos. Os palestinos disseram que também mereciam o direito à autodeterminação, tal como os iraquianos, os libaneses, os egípcios. O outro princípio era a democracia. Se nos retirarem do domínio otomano, sob o qual estivemos durante 400 anos, e quiserem que decidamos o nosso futuro pós-otomano, vale a pena perguntar qual será a natureza do nosso regime, do nosso Estado, da nossa existência política. Queremos decidir democraticamente, através de votação por maioria, se queremos fazer parte da Grande Síria, ser uma Palestina Árabe independente ou fazer parte de uma república federada pan-árabe. Em qualquer caso, depende de nós. E todas as delegações americanas que foram à Palestina de 1918 a 1948 responderam aos palestinos que, embora os princípios da democracia e da autodeterminação fossem valorizados pelo mundo ocidental e considerados os pilares sobre os quais construir o novo mundo árabe pós-otomano, eles não poderiam ser aplicados à Palestina. O Império Britânico tinha prometido que a Palestina se tornaria um Estado judeu, e porque os judeus são uma minoria tão pequena, o princípio da autodeterminação não poderia aplicar-se aos palestinos. E, claro, o princípio da maioria ou da eleição democrática foi excluído para eles. Isto também é importante no contexto da nossa viagem histórica ao passado, para contextualizar o tipo de opressão, o tipo de história ou genealogia do racismo que foi endossado e apoiado pelo Ocidente no caso da Palestina.</p> <p>Agora, este outro pilar não é importante apenas para nos lembrar o que o sionismo fez ou o que a Palestina poderia ter sido. É a base sobre a qual construiremos uma Palestina pós-libertada e pós-colonial, é a base. E devemos pensar sobre os elementos deste passado e como eles se relacionam com uma realidade diferente daquela que tivemos, e não devemos permitir que o atual ataque à Faixa de Gaza e as políticas genocidas de Israel nos impeçam de continuar a pensar na libertação da Palestina e como seria uma Palestina libertada. E temos de falar com os palestinos que não só pensam no movimento tático de amanhã, mas que vislumbram uma Palestina libertada. Foi isso que fiz no livro que escrevi com Ramzy Baroud: falamos com quarenta intelectuais palestinos e lhes perguntamos como imaginavam uma Palestina libertada. E a sua visão de libertação não inclui apenas como lutar por ela, mas também o que ela trará, que é tudo o que tinham na Palestina antes de 1948: uma sociedade que não discrimina com base na religião, seita ou identidade cultural, uma sociedade que respeita a democracia e o princípio de viver e deixar viver. E o mais importante, talvez mais do que qualquer outra coisa, uma sociedade que devolva a Palestina ao mundo árabe, ao mundo muçulmano, que lhe permita regressar, naturalmente, ao lugar de onde foi removida à força.</p> <p>Agora, fazer parte do mundo árabe não é um cenário fácil para muitas pessoas, e com razão. Mas é impossível fazer parte da solução, ou de cenários mais positivos para o mundo árabe, se não fizermos parte dos problemas do mundo árabe. Não se podem discutir os direitos humanos no Irã ou os direitos civis no Egito sem incluir os direitos humanos e civis dos palestinos. Estes debates não fazem sentido porque atingimos sempre o caráter excepcional dos palestinos devido a esta falta de direitos, e uma posição de inferioridade se, de fora, tentarmos ajudar o mundo árabe a lidar com estas questões de direitos humanos e civis. E só quando a Palestina do futuro fizer parte do mundo árabe é que fará parte dos seus problemas, mas também fará parte da sua solução.</p> <p>Encerrarei dizendo, apenas para enfatizar o ponto principal que realmente quero destacar hoje, que há sempre uma miragem dentro do drama, e não se pode subestimar o drama que estamos vendo. Infelizmente, penso que é apenas o começo: Israel vai impor uma catástrofe humanitária não só na Faixa de Gaza, mas infelizmente também na Cisjordânia, porque vai usar o que está acontecendo como pretexto para mudar também as políticas na Cisjordânia. Claro que o mais urgente é tentar impedi-lo por parte do Ocidente com todos os meios à nossa disposição, pressionar para uma intervenção internacional que ponha fim a estas políticas genocidas que, temo, se estenderão também à Cisjordânia. No entanto, também temos de traçar estratégias para o futuro, porque as questões básicas ainda estarão lá depois que este momento específico terminar, de uma forma ou de outra. E, na minha opinião, é este tipo de debate que garante que não perdemos o nosso compasso moral.</p> <p>Não nos desanimamos pela forma como as pessoas tentam nos dizer, certamente depois do que aconteceu em 7 de outubro, que não podemos manter as nossas antigas posições sobre a moralidade. E devemos recordar-lhes que ninguém questiona o direito da Argélia, do Quênia e da Índia de se libertarem do colonialismo, apesar dos incidentes que ocorreram na luta pela libertação, qualquer que seja o nível de violência que existiu ou a forma como foi feita pelas forças anticoloniais e forças colonialistas. Nunca questionamos o direito básico à libertação e à independência, e também não o deveríamos fazer no caso da Palestina: se queremos uma Palestina em paz, devemos falar, acima de tudo, de uma Palestina Livre. Obrigado.</p> <p><strong>Ilan Pappé é historiador israelense exilado na Inglaterra, onde é professor na Universidade de Exeter. Autor de A Limpeza Étnica da Palestina e Dez Mitos Sobre Israel, entre outros livros.</strong></p> https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/announcement/view/181 Mon, 05 Feb 2024 21:05:08 -0300