in Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Vida e morte no feminino: discursos na ordem do patriarcado
Resumo
Os casos de feminicídios no Brasilsão antigos e recorrentes e os discursos sociais que os circundam continuamsendo preocupantes, pois giram, ainda e atualmente, em torno da culpabilizaçãoda mulher (vítima). O objetivo desse trabalho é discutir como os discursos estãoinseridos e mantidos nos sistemas de uma sociedade machista e patriarcal quefundamenta a culpabilização da mulher. O corpusdesse trabalho é composto de comentários (enunciados) por internautasseguidores da página @anapolis.noticias_na rede social Instagram que foramveiculados em duas notícias este ano. Para isso, recorremos aos postulados teóricossobre discurso e poder do filósofo francês Michel Foucault.
Main Text
1 Introdução
Em 1983, a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu a violência contra as mulheres como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.
A ONU (1993) declara também que
a violência contra as mulheres é uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres que conduziram à dominação sobre e à discriminação contra as mulheres pelos homens e impedem o pleno avanço das mulheres, e que a violência contra as mulheres é um dos mecanismos sociais cruciais pelos quais as mulheres são forçadas a uma posição subordinada comparada aos homens [...].
Claramente admitido no grupo das questões de gênero que merecem debates e estudos, os feminicídios constituem a forma mais extrema de violência baseada em gênero que é exercida contra as mulheres, pelo desejo de poder, de dominação, de controle que representa o fim de um continuum de atos violentos.
Estatisticamente o número de assassinatos de homens é maior do que o de mulheres, mas enquanto os homens são assassinados por outros homens em ambientes públicos, as mulheres são assassinadas dentro de casa, na maioria dos casos, por homens com os quais mantinham relações conjugais, que ocorrem após longa rota de violências.
Crimes de feminicídios são politizados e marcam a desigualdade de gênero presente na sociedade. Os feminicídios apresentam um significado simbólico, em que a violência é usada para atestar poder frente aos outros homens. Crimes nesse nível representam as hierarquias entre homens e mulheres, mantida pela inter-relação de sistemas de dominação/exploração, a saber: o patriarcado, o racismo e o capitalismo.
Falar de feminicídio é falar [essencialmente] de dominação masculina que por construção de ordem social, histórica e cultural, encontram-se bases no sistema patriarcal, no qual o homem ocupa lugar de privilégio, ao passo que a mulher recebe um papel secundário, reduzido à função reprodutiva e às tarefas “menos nobres”. O patriarcado continua sendo uma das estruturas nas quais se assentam as sociedades contemporâneas, outorgando violências e dominações que se refletem nos relacionamentos interpessoais.
Discutir sobre a culpabilização da mulher pela sociedade, nos casos de feminicídio, perpassa um longo caminho. Um caminho que percorre a construção social e as relações de poder que constroem e significam a figura feminina.
Dessa forma, para a construção deste texto, analisamos os discursos reverberados em duas notícias de assassinatos que foram veiculadas na página Anápolis Notícias (@anapolis.noticias_) na rede social Instagram este ano (2022). Desta feita, nosso objetivo é discutir como os discursos estão inseridos e mantidos nos sistemas de uma sociedade machista e patriarcal que fundamenta a culpabilização da mulher. Para isso, recorremos aos postulados teóricos da Análise do Discurso Francesa com os estudos sobre discurso e poder do filósofo francês Michel Foucault.
2 Poder na perspectiva foucaultiana
Para tratar de feminicídio e patriarcado é importante abordar o conceito de poder, a fim de compreender as complexidades de um sistema de dominação que se insere em relações micro e macro, que transcorrem milênios na história da humanidade.
Quando pensamos em relações desiguais, fala-se muito em uma existência de poder de um grupo sobre outro, de uma categoria sobre outra, de uma pessoa sobre outra. No caso deste artigo, seria o poder que o homem tem sobre a mulher, sobre o corpo e sobre a vida dela.
Nesse sentido, sobre o poder, o filósofo Michel Foucault, pontua que:
O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. [...] Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu. (FOUCAULT, 1981, p.183-184).
Assim, Michel Foucault (2015, p. 102) afirma que as relações de poder são imanentes a todos os tipos de relações, sendo “efeitos imediatos das partilhas, desigualdades e desequilíbrios que se produzem nas mesmas e, reciprocamente, são as condições internas dessas diferenciações”.
Nessa linha de raciocínio, Jeffrey Weeks aponta que “o gênero não é uma simples categoria analítica; ele é [...] uma relação de poder. Assim, padrões de sexualidade feminina são, inescapavelmente, um produto do poder dos homens para definir o que é necessário e desejável – um poder historicamente enraizado” (WEEKS, 2013, p. 56).
Michel Foucault (1986) demonstrou que o poder é muito mais complexo do que o exercício da repressão e da punição. Quando compreendemos que o poder se exerce também nos saberes, tudo que é considerado como verdade, ou seja, todos os saberes são construídos historicamente, através das relações de poder. Por exemplo, o poder dos homens na sociedade patriarcal não está apenas na dominação física, no controle e na repressão das mulheres; o poder patriarcal é exercido também na crença de que as mulheres são dóceis e meigas.
Pateman (1993) afirma que o poder patriarcal é o mediador fundamental nas relações sociais estabelecidas através do contrato sexual na era moderna. Segundo a autora, “no patriarcado moderno existe uma variedade de meios pelos quais os homens mantêm os termos do contrato sexual” (PATEMAN, 1993, p.279).
A abordagem de Pateman sobre o poder patriarcal está relacionada com a abordagem foucaultiana de biopoder – poder sobre os corpos. Segundo Foucault (1993) no século XIX a sociedade moderna ocidental capitalista firma-se na “era do biopoder” (FOUCAULT, 1993, p. 132). O biopoder traduz-se em “fazer viver ou deixar morrer” (FOUCAULT, 1993, p. 194), sendo que morrer “pode ser também morte indireta” (p. 207). Isto significa que as relações de poder passam a ser exercidas através da gestão da vida, da disciplinarização dos corpos, da produção das populações, “garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia” (p. 133). Com isso, a sexualidade se torna um dos dispositivos[1] mais importantes desse poder.
3 Discursos na ordem do patriarcado: a culpabilização da mulher
Os dados que foram analisados neste artigo consistem em comentários (enunciados) retirados de duas notícias que foram veiculadas na página Anápolis Notícias no Instagram (2022). A saber:
Notícia 1:
Notícia 2:
Após a circulação dessas notícias na rede social, buscamos analisar os comentários dos internautas da página. A primeira notícia circulada na rede no dia 06 de março de 2022 teve 319 comentários e a segunda, circulada no dia 15 de abril de 2022, teve 334 comentários (até a data da nossa análise), desses comentários foram extraídos para análise e transcritos na íntegra (sem correções e/ou alterações), seis referentes a cada notícia.
Referente à notícia 1, destacamos:
a) Essas mulheres ficar com bandido, sabendo que algo possa acontecer qualquer hora misericórdia..........
b) Muito triste mesmo, esse tipo de gente não tem nada a perder, só perde quem se envolve.
c) Acho que as mulheres tem que dar mais valor nelas próprias saber com quem está c relacionando
d) também acho, essas mulheres arruma cada tranqueira, só Deus
e) Eu me pergunto o que uma moça bonita destas vai arrumar bandid0 para namorar e casar. Se o cara não teve índole com os outros com a mulher e com a família é que não vai ter. Que Deus conforte a família, é esse que esse (emoji de um cesto de lixo) humano fique preso.
f) Infelizmente é uma triste realidade , e mais uma vítima daquela velha história, “ACREDITAR QUE ESSES TIPOS DE VAGABUNDOS EX PRESIDIÁRIOS UM DIA IRÃO MUDAR”
Referente à notícia 2, destacamos:
a) Absurdo!!!! Absuuuurrrrdoooo! Que direito ela tinha de fazer isso? Que seja feita justiça! Que dor pra mãe dele, minha amiga, uma pessoa maravilhosa!!!!!
b) Cadeia nela, que ela pague pelos erros e n adianta vim defender ela ah tem gente que ver se ele foi cima dela para né gente para...cadeia nela
c) Nem sempre é o homem, ela era psicopata de ciúmes
d) Nós stories dela antes estava bebendo cerveja se não tivesse bebido talvez teria tido outra atitude. Vai saber neh!
e) É isso que o sistema e a mídia querem, colocar homens contra mulheres e mulheres contra homens. Do jeito que o capeta gosta!
f) Estamos tão acostumados com feminicídios, já pensaram q podia ter sido o contrário? Mulheres não tem perfil de matar maridos e sim o contrário, a legitima defesa deve ser investigada.
Nos comentários dos internautas, o feminicídio funcionaria como um castigo para as mulheres que não sabem fazer bem as suas escolhas, pois “quem procura acha”. Mulheres “desviantes”, pois estão fazendo “coisas erradas”, pois “se não estivesse bebido talvez teria outra atitude”.
É importante salientar que parte desses comentários são reiterados por mulheres. O consentimento feminino está ligado aos discursos naturalizados que hierarquizam homens e mulheres na sociedade, colocando-os em situações desiguais de poder. Esses dizeres reforçam o discurso de culpabilização da mulher (vítima) pela violência sofrida e neste caso também praticada, ditando que não importa o ocorrido, a culpa é sempre dela, e pela manutenção da mulher no espaço que a sociedade machista e patriarcal dita: o lar.
Percebemos nos comentários dos internautas, sempre rememorando o discurso machista e patriarcal sobre a mulher, a mulher que deve ser dócil, resignada ao lar. Um discurso de que qualquer comportamento que foge a isso seria errôneo e/ou inapropriado.
Comentários que reforçam a visão de que as mulheres devem se comportar “de maneira adequada” para evitar violências. Se a violência ocorre é porque o comportamento da mulher não foi adequado, quando, por exemplo, “é psicopata de ciúmes”.
O comportamento da mulher continua sob vigilância. A sociedade lhe dita formas de se vestir, de andar, de se comportar, de onde ir e com quem andar, reforçando o que Foucault (2004, p. 118) diz que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições e obrigações”.
Segundo Medeiros e Medeiros (2016, p. 284), “... tanto na esfera pública quanto na privada ainda se percebe claramente a desigualdade que existe entre homens e mulheres, pois diferentemente dos homens, as mulheres são frequentemente vigiadas”. São vigiadas por uma sociedade que regula o comportamento feminino determinando, por exemplo, a forma de se vestir, de andar, de olhar, de falar. Segundo Tavares,
a mulher sempre viveu em um mundo marcado por conceitos e regras que não foram criadas por elas, mas, para elas. Havia um controle sobre seus dizeres, seus afazeres, sua conduta, enfim, nas sociedades patriarcais, investiu-se na vigilância e na disciplinarização dos corpos das mulheres (TAVARES, 2012, p. 56).
Esse controle torna-se uma técnica, método disciplinar de poder. Foucault (2004, p. 118, grifo do autor) relata que “esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar de disciplinas”.
A mulher precisa [ainda] ser comportada, do lar e se ela não for assim, é julgada, condenada e culpabilizada por todo e qualquer ato que lhe aconteça. Essa é a disciplina [ainda] forçada à mulher. Um controle que lhe é imposto ao seu corpo e ao seu comportamento. E ainda, as que cumprem tais papéis, são também culpabilizadas.
No horizonte dessas concepções, ainda são muitos os motivos que culpabilizam as mulheres pela violência sofrida, provocando o entendimento de que ela mereceria ser violentada para aprender a se comportar adequadamente. Há um contexto da sociedade atual que [ainda] permite a aceitação e justificação desses discursos e dessas violências e na responsabilização das vítimas pelas violências sofridas. Essa situação é considerada com base na naturalização de que o homem é superior e que ainda limita as possibilidades de vivências no âmbito público pelas mulheres.
O feminicídio é uma forma de manifestação do poder que se dá ao masculino em uma sociedade [ainda] patriarcal. De acordo com Cerqueira e Coelho,
a violência de gênero é um reflexo direto da ideologia patriarcal, que demarca explicitamente os papéis e as relações de poder entre homens e mulheres. Como subproduto do patriarcalismo, a cultura do machismo, disseminada muitas vezes de forma implícita ou sub-reptícia, coloca a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem, o que termina legitimando e alimentando diversos tipos de violência [...] (CERQUEIRA E COELHO, 2014, p. 2).
Portanto, o feminicídio é uma manifestação de poder histórico do homem sobre o corpo das mulheres que o considera como seu objeto, um exercício de poder histórico e socialmente construído e justificado ou apoiado por uma sociedade machista e patriarcal que incriminam e culpabilizam as mulheres quando, messe caso, são vítimas.
Diante de muitas conquistas sociais nas últimas décadas, vemos, ainda, a cultura sexista sendo reproduzida nos discursos e práticas dos sujeitos, uma cultura que repassa gerações pelos vestígios da memória de uma sociedade patriarca que desvaloriza a mulher em detrimento do poder masculino.
4 Considerações finais
Este trabalho buscou analisar e demonstrar, através de conceitos e de exemplos, o poder que é exercido sobre as mulheres através de saberes, valores culturais, imaginários sociais, para assim coadjuvar na reflexão feminista e no desafio de romper com essa cultura machista e defrontar o poder patriarcal.
Em vista disso, é de se considerar que ainda se perpetua uma ordem simbólica marcada por relações assimétricas de poder entre homens e mulheres que dinamizam e ressignificam o cotidiano da vida em sociedade.
A mulher ainda está veiculada à ideia de inferioridade, de submissão e servidão aos impulsos e desejos do homem, contribuindo para a naturalização de dizeres que fundamentam os discursos do agressor, legitimando a violência contra as mulheres. Há respaldos e apoios sociais na culpabilização da mulher (vítima).
É preciso enfrentar os poderes reproduzidos na sociedade, porque nosso desafio é lutar sempre, até conquistarmos a completa igualdade de gênero, a partir de uma mudança na cultura patriarcal.
Resumo
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