in Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Representações de gênero e raça na cultura cinematográfica do filme E O Vento Levou (1939)
Resumo
Este trabalho está aportado nos estudos de observação da arte cinematográfica como uma “pedagogia cultural” adquirindo assim um significado específico o qual insere-se no ato de educar globalmente com a aspiração de uma narrativa que fale a todos. O objetivo deste trabalho é compreender como são representadas as distintas relações dos sujeitos a respeito de gênero e raça na cultura cinematográfica do filme E o vento levou (1939). Através da análise etnográfica é possível observar dinâmicas de gênero, sexualidade, raça, desvendando as tramas de discursos específicos representantes das estruturas de poder. Abordagem a qual capta os contextos de textos e imagens apresentadas pela mídia “revelando espaços sociais da televisão” (RIAL, 2005). Destarte, através dos personagens de um filme podemos observar relações de gênero, raça, poder, cultura e distribuições sociais que identificam o lugar do homem e da mulher em uma determinada sociedade.
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Resumo
1 Introdução
Para esta pesquisa, foi feita uma leitura entre os anúncios da seção de cinema do jornal A União e a análise fílmica do longa-metragem E o vento levou (1939) como objeto de investigação através do olhar qualitativo da pesquisa em História da Educação.
Embora o jornal A União (Fonte primária desta pesquisa) não pertença à imprensa pedagógica ou aborde questões totalmente voltadas para o campo educacional, esta análise parte da premissa de que um espaço público como o cinema age na condução de formação de sujeitos e na construção de subjetividades, para além do ambiente escolar. Segundo Eric Hobsbawm (2009) o cinema tinha a maior importância sobre outras artes porque fazia poucas exigências ao público analfabeto. Sendo assim, ao contrário da imprensa que interessa mais as elites, “o cinema foi quase desde o início um veículo de massa internacional”. O objetivo deste trabalho, portanto, é compreender como são representadas as distintas relações dos sujeitos a respeito de gênero e raça[1] na cultura cinematográfica do filme E o vento levou (1939).
Ao escolher o uso do cinema como instrumento de reflexão da sociedade, utilizamos o conceito de Etnografia de Telas, uma das abordagens empregadas nos estudos da Antropologia. Abordagem a qual capta os contextos de textos e imagens apresentadas pela mídia “revelando espaços sociais da televisão” (RIAL, 2005, p.120).
Segundo 1 nome Rial (2005, p.120) a etnografia de tela “[...] é uma metodologia que transporta para o estudo do texto da mídia procedimentos próprios da pesquisa antropológica, como a longa imersão do pesquisador no campo, a observação sistemática, registro em caderno de campo e outras próprias da crítica cinematográfica”. Em termos de metodologia, este trabalho se desenvolve pelas abordagens históricas que, para Michel de Certeau (2008), articula-se teórica e metodologicamente com o lugar de inserção de seu produtor. Assim, “Toda pesquisa histórica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade.” (CERTEAU, 2008, p. 66).
Compreendendo esta definição, focalizaremos em uma abordagem histórica através dos estudos sobre Cinema[2], relações de gênero e étnicos raciais, utilizando o conceito de cultura educacional (PINHEIRO, 2009) correlacionados ao processo educacional da Paraíba.
1.1 A linguagem cinematográfica na narrativa histórica
Observando o cinema como um campo que se integra a uma instância educativa é válido ressaltar o poder da narrativa fílmica na construção simbólica do que é ser homem/ mulher; homem negro/ mulher negra no pré e pós-guerra de secessão nos Estados Unidos. A junção raça e gênero aqui trabalhados passa a ser validada pois, segundo 1 nome Kilomba (2020), raça e Gênero são indissociáveis sendo assim o gênero impacta diretamente na construção da raça e na experiência do racismo (KOLOMBA, 2020). O cinema passou a ser uma das formas culturais mais significativas em processo de formação humana nas primeiras décadas do século XX (LOURO, 2015). Tendo observado esta expressão formativa no âmbito de uma pedagogia cultural, nos deparamos com um questionamento a respeito da indústria cinematográfica: como são representadas as distintas relações dos sujeitos a respeito de gênero e raça na cultura cinematográfica do filme E o vento levou (1939)?
A fim de responder essa questão foi analisado o longa-metragem indicado em treze categorias no Oscar de 1940, vencedor de oito, incluindo as de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Atriz (Leigh) e Melhor Atriz Coadjuvante (Hattie McDaniel), a primeira mulher negra a conquistar um Oscar. Nos Estados Unidos, o lançamento ocorreu em 15 de dezembro de 1939, Gone with the Wind foi avaliado de forma positiva por muitos críticos de cinema, em que sua produção e seu roteiro seriam excepcionais, embora algumas críticas pontuassem que o filme não possuía drama o suficiente e que era, indubitavelmente, muito longo.
Não distante do mundo cinematográfico, a Paraíba estreou o longa E o vento levou no dia 25 de outubro de 1941 em um anúncio do jornal A União. Assim como os slogans, o anúncio mostrava que o filme estava em sessão especial: em Avant – Premiére às 19:15h, no cinema Rex da capital paraibana, pelo preço de 6$600 – Est. 5$500. Sob certos aspectos, Hobsbawm (2009) afirma que o impacto da vanguarda para o cinema comercial começa a mostrar que o modernismo deixaria uma marca diária na vivência social. O que mostram os jornais é um público assíduo e participe da cultura cinematográfica através dos modos de agir, vestir e pensar.
Focalizando na Educação e Cultura como conceitos pertencentes a uma prática educativa, é válido observar que existem muitos resquícios do cotidiano educacional se manifestando nas situações culturais. Neste sentido, nos aportamos no conceito de Cultura Educacional desenvolvido por 1 nome Pinheiro (2009) “todavia, nada impede que as permanências, assentadas na tradição, que podem se processar no interior da escola também possam ser alcançadas na dimensão extra- institucional escolar”. Conforme nos sugere Pinheiro (2009), contribuindo assim para uma cultura educacional. Articuladamente, na abordagem teórico metodológica deste trabalho, faremos o uso específico do conceito de cultura educacional. Esta não está restrita somente àqueles que fazem uma educação regular e sim àqueles que fazem “a educação enquanto prática social ou como reflexão histórico-filosófica” Pinheiro (2009) sendo constituída a partir de diversos fatores históricos e socioculturais.
1.2 O lugar do gênero e da raça na cena fílmica de ‘e o vento levou’.
Ao som da música tema (Gone With the Wind), o longa metragem se inicia apresentando os nomes dos atores principais - atores brancos, os quais permanecem em posição de destaque ao longo de toda a trama, a exemplo, Clark Gable (Rhett Butler), Vivien Leigh (Scarlett O'hara), Leslie Howard (Ashley Wilkes), Olivia de Havilland (Melanie Hamilton). O nome dos atores negros, como: Hattie McDaniel, vencedora do Oscar por melhor atriz coadjuvante, Oscar Polk (Pork) e Butterfly Mc Queen (Prissy) aparecem ao final dos créditos iniciais com o título de “funcionários da casa”[3] o que podemos analisar como uma forma de o sujeito negro desenvolver os trabalhos domésticos os quais não seriam para os brancos. Projetando o que Morisson (1992 apud KILOMBA, 2020.) expressa como “dessemelhança”, é através da exploração do outro uma identidade a qual a branquidade constrói para se dizer diferente do “Outra/o”. Fazendo a identidade negra crer no processo de negação de si próprio, “Que decepção, ser-se forçada/o a olhar para nós mesmas/os como se estivéssemos no lugar delas/es. Que está presa/o nessa ordem colonial” (KILOMBA, 2020).
O modo como somos vistos e representados, claramente influencia na forma de como nos vemos. Se o cinema cria imagens sobredeterminadas a respeito de pessoas, gênero e sexualidade de maneira negativa, é assim que se enxergam essas pessoas e os próprios espectadores os quais não estão sobredeterminados. A mensagem linguística que está disponível no letreiro de abertura do filme revela a presença do ambiente sombrio das experiências cotidianas de racismo e fascínio pela hierarquização o qual a escravidão está posta como a representação do privilégio.
Segundo Kilomba (2020) “[...] nós nos tornamos a representação mental daquilo com que o sujeito branco não quer parecer” (KILOMBA, 2020). Entretanto, é digno de nota observarmos algumas táticas adquiridas, possivelmente, pela própria atriz Hattie McDaniel a qual burlava alguns aspectos de submissão enquanto interpretava Mammy. É possível também que a resposta de Hattie McDaniel fosse uma tática para se fazer ouvida e permanecer dentro daquela sociedade. Já que para Certeau a astúcia dos consumidores de diferentes maneiras de fazer, possibilita a entrada desses atores “agentes de táticas” para empresas de controle, fazendo parte daquele cotidiano. Desta forma, afirma Certeau (2014, p.45), “a tática só tem por lugar o do outro”. As táticas se originam de diferentes maneiras de fazer no cotidiano, elas são artes desviacionistas que se opõem às estratégias.
Segundo Luce Giard (2014), “convoca-se uma multiplicidade de saberes e de métodos, aplicada segundo procedimentos variados, escolhidos segundo a diferença das práticas consideradas” (GIARD, 2014, p. 19). Tal fenômeno, é corroborado com o pensamento de Lélia Gonzalez quando discute a relação da mãe preta. Lélia Gonzalez[4], nos mostra o caráter de resistência desenvolvido pela "mãe preta" (GONZALES, 2014), através de atos de negociação, os quais asseguravam a sobrevivência dessas mulheres e de toda sua família.
Os filmes podem produzir uma configuração social e educacional bastante expressiva, tanto para o mal quanto o bem, implicando em mudanças e que, de certo modo, exigem um olhar atento da sociedade para sabermos incorporar ou não os discursos sensatos dessas produções cinematográficas. Na emblemática cena 1:16:02 vemos o nascimento heroico da personagem branca Scarlett indo enfrentar os horrores da guerra em busca do médico para fazer o parto de sua amiga.
Imagem 1- cena do filme E o vento levou (1939) - Scarlett no meio dos feridos da guerra.
Esta imagem vai ao encontro do pensamento da branquitude, pondo em foco o triunfo da mulher branca que mesmo sem seus recursos e suas condições de direito vai em busca da salvação de seu povo. Pode ser notado ainda a ausência da posição dos subalternos em personagens heroicos, proporcionando uma articulação do status quo para o silenciamento das vozes negras, como calaram a de Prissy.
Em última análise, podemos observar o processo de constituição do imaginário branco, pois segundo Fanon (apud KILOMBA, 2020) o que chamamos de alma negra é uma construção do homem branco. Em outras palavras, é o medo do homem branco criado pela sua própria neurose, uma fantasia assustadora do que os negros “são ou possam ser”. Como exemplo, analisamos a cena 1:36:30 de quando Scarlett volta de Atlanta para a fazenda Tara e encontra os “devotados escravos” ainda trabalhando para sua família, sem água, comida e demais recursos, em uma fazenda que foi devastada pela guerra de secessão. Para salvaguardar sua suposta pureza, os brancos parecem estar o tempo inteiro pensando no que seria “o problema dos negros” não saberem o que fazer com descendentes da diáspora africana, mas necessitam deles para esconderem o fracasso de suas vidas baseadas no patriarcado e colonialismo.
Imagem 2- cena do filme E o vento levou (1939) – Pork e Mammy esperando Scarlett para conversar.
Com cores frias, a cena demonstra que não há nada mais o que esperar ao se relatar os problemas que a guerra trouxe e que diante disso eles permanecem fiéis pois muitos outros deixaram a fazenda. Isto nos faz lembrar de uma crítica feita no documentário Eu não sou negro escrito por James Baldwin em que ele analisa a cena do filme Acorrentados (1958):
Quando o Sidney salta do trem, os brancos liberais da cidade ficaram muito aliviados e felizes, mas quando os negros o viram saltar do trem, eles gritaram: ‘Volte para o trem imbecil!!!’ O negro salta do trem para tranquilizar os brancos, para que eles saibam que não são odiados. Que apesar de terem cometido erros humanos, eles não tinham feito nada para serem odiados (EU NÃO SOU SEU NEGRO, 2017).
Contudo, o processo de construção do imaginário branco serve para estigmatizar, estagnar e difamar a figura do negro e ao mesmo tempo ele precisa dessa figura para poder fazer uma alienação nessas pessoas, as quais se verão forçadas a sua própria rejeição. Portanto tendo rememorado este doloroso impacto sentimental e corporal é preciso repensar esta estrutura colonial a qual ainda paira pelos discursos cinematógrafos. E o que este artigo se propõe é criticar, discutir, refletir para educar a fim de que possamos não mais utilizar esta linguagem cruel. Pois, como relata Hall (apud KILOMBA, 2020) não deveríamos nos preocupar com brancos no colonialismo, mas sim com o fato do sujeito negro ser sempre forçado a desenvolver uma relação consigo mesmo através do Outro/a e nunca com seu próprio EU.
4 Considerações finais
Tendo em vista os aspectos observados, o que torna o filme E o vento levou (1939) escolhido como objeto de estudo deste artigo é o fato de que, quando estudamos cinema numa perspectiva história, o longa metragem está sempre em destaque enquanto grande produção cinematográfica. Sendo assim, ao observarmos o filme através da metodologia de etnografia de tela é possível notar temáticas interseccionais como a questão de gênero e raça bem como temas sensíveis, a exemplo da normalidade do racismo em períodos históricos. Como o objetivo do trabalho foi compreender como são representadas as distintas relações dos sujeitos a respeito de gênero e raça na cultura cinematográfica do filme E o vento levou (1939), este artigo procurou fazer uma análise de como essas representações foram apresentadas e consumidas pelo púbico paraibano em meados do século XX. A fim de que possamos criticar o racismo velado por séculos em instâncias culturais que cercam nossas vidas, a exemplo do cinema – o qual agia por uma linguagem universal que poderia falar a todas e todos – que nas décadas de 1930 e 1940 se lançava como um grande articulador educacional, verificamos por meios dos discursos teóricos dos intelectuais negras/os que as práticas coloniais estereotipam o gênero e a raça de maneira obscura, por meio do discurso das visualidades.
Buscou-se então, fazer um tensionamento a respeito da realidade cinematográfica na questão a qual abordamos o racismo como prática colonial. Da mesma forma, reconhecermos através do discurso das/dos intelectuais negras/os as diferentes experiências, práticas e ações de resistência vividas pelos sujeitos negras/negros no mundo desde “as memórias da plantação” até o processo de descolonização. Assim, para Kilomba (2020) o passado colonial é trazido à tona, no sentido de que não foi esquecido e tampouco o podemos esquecê-lo. Este processo de descolonização refere-se ao atravancar as práticas obscuras do colonialismo fazendo com que conquistemos a autonomia das/dos sujeitos que sofreram na pele as práticas e traumas da colonização.
É justamente por meio dessas representações que podemos observar a tendência aos papéis hegemônicos e sua produção da manutenção do fenômeno do colonialismo, a qual gera a pouca visibilidade da diversidade cultural que temos no mundo. Embora, paulatinamente tenhamos que abordar a mesma temática, é possível observar que alguns parâmetros sociais vêm apresentando mudanças significativas as quais correspondem à prática de uma sociedade mais justa, coerente e inclusiva. Face ao exposto, é esperado que possamos alcançar algumas rupturas no tecido hegemônico através da ampliação do debate acerca das questões de gênero e raça pois o ato de descolonizar dar-se por meio da fala, crítica, reflexão e ação, tornando assim, possível a mudança.
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