in Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Bissexualidade na pesquisa: estudo de revisão sistemática da leitura
Resumo
A sexualidade é um fenômeno humano e complexo e sua compreensão pode variar de acordo com o contexto em que se manifesta. Esta pesquisa teve por objetivo estudar como a bissexualidade tem sido tratada por meio de uma revisão sistemática da literatura. As bases de dados foram Science, Psycinfo, Pubmed, Scopus, Scielo e Pepsic com o descritor de busca “bissexualidade”. Os critérios de inclusão foram possuir a palavra “bissexualidade” no título, publicações entre 2000 e 2019 e estarem em inglês ou português. Foram localizados 31 documentos, excluídos 4 e resultantes 27 para análise de conteúdo. Destes, 26 eram de língua inglesa, e apresentam dados referentes às vulnerabilidades específicas e relevantes deste grupo. A pesquisa apresenta que os dados sobre essa população são escassos, contribuindo para a invisibilidade do grupo.
Main Text
1 Introdução
Pensa-se a sexualidade como um fenômeno humano que integra fatores de um corpo que vive em uma sociedade, cultura e história. Dessa forma, a sexualidade não pode ser compreendida e pesquisada em sua totalidade se desconsiderarmos o contexto, isto é, as contingências às quais as pessoas são expostas. Assim, a identidade de gênero e a orientação sexual são componentes da sexualidade ampla e existem uma gama de possibilidades para a sua expressão (LOURO, 2018).
O mundo, cada vez mais, tem lidado com o reconhecimento da diversidade sexual e, ao mesmo tempo, enfrentado com as situações de discriminações e de preconceitos. Homofobia pode ser definida como um conjunto de comportamentos complexos, envolvendo comportamentos operantes e respostas emocionais, relativos às várias modalidades de agressão (seja física, psicológica, sexual ou outras) contra indivíduos homossexuais ou que se identifiquem com a cultura homossexual (FAZZANO; GALLO, 2015).
Mesmo que a academia tenha se utilizado da palavra homofobia como sinônimo de LGBTQI+fobia[1], é necessário que se aponte que as discriminações sofridas por homossexuais, lésbicas, bissexuais, intersexuais, travestis e transexuais, e queers são distintas entre si, se manifestam diferentemente e possuem intensidades desiguais (AVELAR; BRITO; MELLO, 2010).
Junqueira (2009, p.30) afirma que nas escolas as temáticas relativas às homossexualidades, bissexualidades e transgeneridades ainda são “invisíveis no currículo, no livro didático e até mesmo nas discussões sobre direitos humanos”. Apesar disso, as pesquisas LGBTQI+ têm aumentado no Brasil e no mundo, principalmente sobre a população lésbica, gay e transgênero. Ainda assim é perceptível que a população bissexual não costuma ser um foco dentro do tema.
Durante anos, tem sido difícil definir a bissexualidade (KLESSE, 2018), mas se pode tentar definir o comportamento bissexual como uma atividade sexual de uma pessoa que, possivelmente por um período de tempo, participa de outras atividades sexuais com outros homens, mulheres, e às vezes, parceiros transexuais (SANDFORD; DODGE, 2008). A problemática nessa definição se refere ao uso de homens e mulheres como sexo biológico, excluindo da definição pessoas não binárias e queers que não se classificam como transexuais.
Essa questão é comumente apontada como parte do porque é tão difícil definir bissexualidade. Klesse (2018), aponta que enquanto alguns ativistas bissexuais exploram essa identidade como um ponto de partida para a desestabilização e transgressão da dualidade hetero-patriarcal, heternormatividade e mononormatividade (naturalização da monogamia), outros ativistas tentam encaixar a bissexualidade como uma terceira classificação de orientação sexual como forma de reconhecimento.
Diante do exposto, pergunta-se o quanto e o que se tem estudado sobre bissexualidade e sob quais vertentes? Quais modalidades de estudo e procedimentos de coleta e análise? Para responder a essas perguntas, propusemos este estudo documental a partir de revisão sistemática da literatura.
Este estudo teve por objetivo analisar a temática da bissexualidade por meio de uma revisão sistemática da literatura. Espera-se com os dados apontar caminhos para a contribuição da psicologia na construção de saberes sobre a bissexualidade, e o combate à bifobia.
2 Metodologia
Este estudo é de natureza quantitativa, de tipo descritivo que realiza uma revisão sistemática de literatura (GIL, 2002) em bases de dados previamente delimitadas. Os procedimentos de coleta e de análise de dados ocorreram da seguinte forma:
● Elegeu-se as bases de dados relevantes na área da Psicologia: Science, Psycinfo, Pubmed, Scopus, Scielo e Pepsic;
● Foram buscados artigos em periódicos, a partir do descritor: “bissexualidade”, (propôs-se o uso de apenas um descritor genérico já que a combinação de descritores dificultava ainda mais reunir artigos);
● Os critérios de inclusão foram: possuir palavra no título, ser de acesso livre, período de datas: anos entre 2000 e 2019; línguas inglês e português.
A análise dos artigos foi feita a partir da caracterização geral dos artigos, como, por exemplo, a natureza dos estudos, o público-alvo (participantes envolvidos), autores dos estudos, local de publicação, área das revistas, etc. Também foram identificados os instrumentos utilizados para as pesquisas práticas, com ênfase naqueles que propunham mapear o preconceito. A partir dessa análise, propõe-se uma leitura e interpretação psicológica, já que a área possui diversas contribuições para o mapeamento e coleta de dados sobre o preconceito.
3 Resultados e Discussão
Foram localizados 31 artigos, sendo 27 incluídos nas análises. A respeito dos quatro artigos restantes, optou-se pela exclusão da análise já que eram referentes à área biológica, apesar da busca inicial. Destes, 3 artigos se referiam a possibilidade de encontrar-se bissexualidade em plantas, e um se referia a prevalência entre destros e canhotos entre a população bissexual, sendo, portanto, fora do escopo deste estudo.
Podemos observar as publicações por ano na Figura 1. As maiores publicações anuais foram concentradas em 2009 (n=4) e em 2018 (n=10). É relevante apontar que os anos 2000, 2001, 2002, 2004, 2005, 2006, 2007, 2011, 2012, 2013 e 2019 não tiveram publicações sobre o assunto dentro do critério do presente estudo, sendo que esses anos correspondem a mais de 50% do período pesquisado.
As áreas das revistas foram: Sexualidade(n=16), Psicologia (n=6) e Geral (n=6). Os artigos foram organizados em quatrocategorias temáticas: 1) “Discussões teóricas e conceituais” (n=10 artigos); 2)“Vivências bissexuais: visibilidade, saúde sexual, clínica terapêutica,relacionamentos (n=8); 3) “Aspectossociais e inclusivos” (n=5), 4)“Aspectos da saúde: caracterização e descrição” (n=4). Como pode-se observar naFigura 2, a temática “Discussões teóricas e conceituais” ocupa 37% dos artigos.
Quanto ao local dos artigos publicados, 35,7% (n=10) foram feitos no Reino Unido, seguidos por 32,1% (n=9) feitos nos Estados Unidos. Esse resultado é esperado já que as línguas incluídas na análise foram inglês e português. Em português, apenas um artigo foi encontrado, feito no Brasil. Outros países que publicaram suas pesquisas no assunto na língua inglesa foram o Canadá (n=3), a Holanda (n=2), a Itália (n=1), a Índia (n=1) e a Austrália (n=1).
Foram encontrados 14 artigos teóricos e/ou com análise de conteúdo (p. e. análise midiática), e 13 artigos onde foram feitas pesquisas de campo. Das pesquisas em campo, cinco pesquisas são qualitativas, focadas majoritariamente em entrevistas semiestruturadas, cinco pesquisas são quantitativas e, três pesquisas apresentam tanto parte quantitativa como qualitativa.
Ao falar em população abrangente nas 13 pesquisas de campo, nota-se que quatro pesquisas incluíram a população de modo geral. Majoritariamente, essas pesquisas abrangem o preconceito e as ideias pré-concebidas da população em relação a comunidade bissexual. Outras quatro pesquisas de campo se utilizaram da população bissexual para a obtenção de dados. Duas pesquisas utilizaram-se de mulheres bissexuais, e outras duas utilizaram-se de homens que possuem contato sexual com outros homens (i. e., homens gays, bissexuais, e homens com comportamento bissexual). Essa categoria não foi utilizada em nenhuma pesquisa com o gênero feminino. Nenhuma pesquisa utilizou dados coletados apenas com homens bissexuais. Uma pesquisa coletou dados com duas mulheres bissexuais e um homem trans homossexual. Os métodos mais utilizados para o contato com a população da coleta foram amostra de oportunidade, busca em grupos da internet, e snowball (quando um participante indica alguém que cumpre com os requisitos para a coleta, se tornando um próximo participante).
Sobre os métodos de obtenção de dados das pesquisas de campo, o mais utilizado é a entrevista semiestruturada (4 artigos). Um artigo, (GUSMANO, 2018) utiliza-se do “Biographical Narrative Interpretive Method”, (BNIM), que se trata de uma técnica para entrevistas que parte de uma única questão (“Single Question aimed at Inducing Narrative”) que é intencionalmente aberta, com intenção de provocar uma produção de narrativa a partir dos próprios termos dos participantes (CORBALLY, O’NEILL, 2014). Outro artigo, (PEREIRA; BECKER; GARDINER, 2017) utiliza uma combinação de uma combinação da “Q methodology” e da “Think Aloud” para explorar como o conhecimento cultural sobre bissexualidade é construído e mantido.
A “Q-methodology” é um estudo sistemático sobre os pontos de vista dos participantes, a partir do ranqueamento dos participantes sob uma série de afirmações. Trata-se de um instrumento criado por William Stephenson que envolve técnica, método, filosofia, ontologia e epistemologia. Esse método revela e descreve visões diferentes dentro de grupos, assim como consensos. O método é de livre acesso, e se encontra disponível no site: https://qmethod.org/
Já o método “Think Aloud” foi desenvolvido a partir de métodos de introspecção mais antigos. Tem suas raízes nas pesquisas psicológicas, e seu primeiro uso é datado de 1987, com Breuker e Wielinga, mas foi validado em 1993, com Ericsson e Simon. Tal método trata o protocolo verbal como dado, e evita interpretações, verificando o processo de verbalização mais simples (SOMEREN et al., 1994).
Outras pesquisas foram mais vagas em relação à sua coleta de dados. Um artigo (HUBBARD; de VISSER, 2015) diz que a coleta de dados foi feita através de um questionário online sobre atitudes em relação a bissexualidade, homossexualidade e heterossexualidade, e em quão estáveis eles acreditavam que essas orientações seriam. Outro artigo, ainda, (TOFT, 2014), apresenta apenas que o método de coleta fora 80 questionários autoaplicáveis, e 20 entrevistas mais profundas.
Outros 3 artigos utilizam-se de escalas não referentes necessariamente à sexualidade, como Hospital Anxiety, Depression Scale, Venereal Disease Research Laboratory and HIV e escalas referentes a estresse psicológico e de minorias (RICH et al., 2018; KUMTA et al., 2010)
Tratemos de mais dois instrumentos utilizados pela bibliografia que tratam especificamente sobre o campo da sexualidade. São eles: “Klein Sexual Orientation Grid (KSOG)”, utilizado no artigo de Weinrich et al. (2014) e a “Biphobia Scale”, utilizado no artigo de Hertlein; Hartwell e Munns (2016).
O Klein Sexual Orientation Grid, (KSOG), é um sistema que procura descrever a orientação sexual de um indivíduo de uma forma bastante detalhada. Foi criado em 1978 pelo Dr. Fritz Klein, em seu livro “The Bisexual Option”. O instrumento não tem pretensão de função diagnóstica, mas sim de fornecer uma visão complexa e cheia de nuances sobre a sexualidade. É de livre acesso e foi adaptado para a linguagem contemporânea, sendo que qualquer pessoa pode fazer o teste a partir do site: https://bi.org/en/klein-grid.
O teste considera diversas partes da sexualidade, sendo elas: atração sexual; comportamento sexual; fantasias sexuais; preferência emocional; preferência social; estilo de vida homo/heterosexual; e autoidentificação. Também leva em consideração o dinamismo da sexualidade por meio do tempo (passado, presente) e a situação ideal para o indivíduo. Apesar de considerar o dinamismo da vida sexual, o instrumento deixa a desejar quando se trata da população assexual, já que desconsidera como opção a falta de atração ou a necessidade romântica e também da população trans, utilizando-se sempre do termo “sexo”, e não gênero.
Outra pesquisa de campo, ainda, utiliza-se da “Biphobia Scale”, junto com outros instrumentos já publicados (não identificados), criando assim um instrumento com 147 itens de questões abertas sobre o estigma experienciado pelos participantes bissexuais. A Escala de Bifobia (tradução livre), foi criada por Mulick e Write em 2002 e apresenta sentenças com as quais o participante pode escalonar o quanto concorda ou não. Algumas das sentenças são:
- “Eu não gosto de indivíduos bissexuais;
- Eu acredito que a bissexualidade é errada;
- Eu gostaria de ter uma pessoa bissexual como vizinho/a;
- Eu seria amigo/a de uma pessoa bissexual; (...)
- Indivíduos bissexuais espalham AIDS para a população heterossexual; (...)
- Eu não acho que pessoas bissexuais devam trabalhar com crianças; (...)
- Eu tenho relacionamentos instáveis com pessoas que eu acredito serem bissexuais;
- Pessoas bissexuais querem transar com todo mundo;
- Pessoas bissexuais não são capazes de controlar os próprios impulsos.” (p.57, tradução livre)
Sabe-se que se utilizar de afirmações desse tanto pode não dar dados muito precisos em relação à bifobia, já que existe um discurso do que é ou não aceitável de se dizer. O participante, portanto, pode responder o que ele acredita que o aplicador, ou outros agentes, quer que ele responda, omitindo o que ele realmente pensa.
4 Considerações Finais
A partir dos resultados do presente estudo, destaca-se a baixa visibilidade que a bissexualidade tem frente às outras sexualidades. Vê-se que os estudos que pesquisam a bissexualidade não costumam ser de psicologia, e essa forma de identidade está longe de ter dados científicos concretos e conclusivos. A psicologia tem parte da responsabilidade de possibilitar que a bissexualidade saia das sombras, tratando-a como tema de pesquisa e criando dados sobre a população e sobre a bifobia, para que, assim, possamos criar estratégias para lidar com o preconceito contra bissexuais. Estimula-se também a criação de intervenções para a população em geral entender, conhecer e desmistificar a bissexualidade.
Esse estudo, portanto, propõe um começo, um levantamento básico de bibliografia para que a bissexualidade e as sexualidades não condizentes com o binarismo social possam ser estudadas a fundo pela psicologia.
Resumo
Main Text
1 Introdução
3 Resultados e Discussão
4 Considerações Finais