in Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
A masculinização pelo ensino: educação escolar para adolescentes no estado Paraná em meio a ditadura (1977-1984)
Resumo
Este trabalho tem como objetivo analisar as reverberações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº. 5.692, de 11 de agosto de 1971 (LDB nº. 5.692/1971) nas atividades desenvolvidas pelo Serviço de Orientação Educacional (SOE), na Escola Tiradentes, localizada em Curitiba, entre os anos de 1977-1984). A partir da LDB nº. 5.692/1971 a formação para o trabalho tornou o ensino técnico como compulsório. A “sondagem de aptidão” foi a forma encontrada para supostamente orientar os/as estudantes para a escolha profissional, mas também serviu com forte reforço das distinções de gênero construídas historicamente junto de um discurso moral na formação dos/as estudantes. Por meio dos estudos da interseccionalidade levantados por Creshaw (2004) e de pânico moral desenvolvidos por Giddens e Sitton (2016) investigo os documentos da referida instituição. Acredito que junto dessas observações podem serem compreendidas a proposta de ensino da época e os reflexos na história da educação.
Main Text
1 Introdução
Educar para as relações de trabalho estão constantemente como pautas de discussão em congressos, reformas educacionais, âmbito legislativo, dentre outros espaços. Na legislação educacional, ao longo do século XX, a educação para o trabalho foi sendo cada vez mais aprimorada, dado os distintos contextos experenciados no século passado. Investigar sobre a relação entre ensino e as relações de trabalho, e como o ensino é pensado para atender o mercado de uma determinada época, permite expandir a compreensão sobre o ensino e perceber como as propostas educacionais estão envoltas de diferentes debates que abarcam metodologias, conteúdos, práticas pedagógicas, dentre outros elementos que irão configurar um modelo educacional de uma determinada época.
Na década de 1960, com a instauração do golpe militar, em 1964, o ensino escolar esteve entre as pautas do governo. A história e historiografia da educação permite compreender alguns dos motivos que impulsionaram os debates, dentre eles sobre a busca de que o ensino estivesse aliado aos interesses do novo governo na manutenção da ordem política. Principalmente como uma tentativa de conter mudanças sociais compreendidas como ameaças comunistas, tais como a sexualidade e movimentos sociais como o feminista, e do interesse em barrar os debates e análises críticas desenvolvidas desde a década de 1940. Desde aquela década havia o objetivo por parte de alguns grupos em promover um ensino democrático que atendesse as classes populares que se encontram de forma majoritariamente excluídas do ensino, ponto discrepante com os ideais de parte dos apoiadores do governo ditatorial (COWAN, 2016; ROMANELLI, 1998).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº. 5.692, de 11 de agosto de 1971 (LDB nº. 5.692/1971) materializou as discussões realizadas na década anterior. Com a implementação de um novo modelo de ensino aliado aos interesses dos governantes da época, essa legislação contribuiu para estruturar o ensino em todo o território nacional junto de sua maior premissa, a educação para o trabalho. Com base nessa legislação, o ensino escolar foi distribuído em ensino fundamental (de 1ª a 4ª série e de 5ª a 8ª série), sendo os anos finais do ensino fundamental de responsabilidade de cada estado, e a criação do ensino médio, de três anos. Em ambas as etapas deveria existir a qualificação para o trabalho, para isso, já no ensino fundamental deveria existir a realização da sondagem de aptidão, que consistia em uma forma de orientar os/as estudantes para possíveis atividades profissionais. Junto disso, para quem continuasse o ensino teria compulsoriamente a formação técnica durante o ensino médio.
No estado do Paraná, foi construída uma Equipe de Currículo para desenvolver o modelo de ensino e estrutura curricular paranaense. A organização do Complexo Educacional do Colégio Estadual do Paraná, composto por oito instituições educacionais, tendo apenas o Colégio Estadual do Paraná (CEP) com oferta do ensino médio, sendo esse a unidade centro, integravam ainda as escolas: Escola Tiradentes (unidade 1); Escola Dr. Xavier da Silva (unidade 2); Escola Professor Brandão (unidade 3); Escola Conselheiro Zacarias (unidade 4); Escola Dona Carola (unidade 5); Escola Aline Picheth (unidade 6); Escola Amâncio Moro (unidade 7), serviram para a implementação do projeto piloto de ensino para atender a LDB nº. 5.692/1971. Assim, a partir do ano de 1972, gradativamente foram sendo incorporadas as series de ensino para atender a referida legislação. Em meio as práticas pedagógicas e composição curricular para atender a formação para o trabalho, cada instituição possuía o Serviço de Orientação Educacional (SOE), responsável para aprimorara a “sondagem de aptidões” que deveria ser realizada no ensino fundamental, como demandava a lei.
A partir da compreensão de que investigar sobre as ações desenvolvidas no Complexo Educacional do Colégio Estadual do Paraná permite compreendermos parte da história da educação e questões que atravessam o contexto histórico da época, este texto tem como objetivo investigar sobre as ações desenvolvidas pelo SOE da Escola Tiradentes entre os anos de 1977-1984. Justifica-se o estabelecimento do recorte temporal por acreditar que os documentos disponíveis do referido período permitem compreender parte dos objetivos educacionais e como se desenhavam as práticas voltadas à formação para o trabalho.
2 Metodologia
Este trabalho integra parte das pesquisas realizadas junto da tese defendida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Na pesquisa foram utilizadas diferentes fontes históricas produzidas no âmbito educacional paranaense, principalmente de produções do Complexo Educacional do Colégio Estadual do Paraná. Para este trabalho, são utilizados os relatórios produzidos pelo Serviço de Orientação Educacional da Escola Tiradentes, por compreender que a partir das ações desenvolvidas nessa instituição pode ser observado parte das atividades desenvolvidas nas demais instituições que integram o complexo.
Os relatórios foram produzidos a partir da junção de distintas atividades desenvolvidas durante os anos letivos de 1977-1984. Ao final do ano foram encadernados e capa dura e arquivados. A análise desses documentos consistiu na leitura e análise de dados a partir das noções conceituais dos estudos da interseccionalidade, e da noção de pânico moral.
Compreende-se por interseccionalidade uma epistemologia analítica que consiste em compreender como distintos marcadores sociais agem no processo de inclusão ou exclusão dos grupos na configuração do tecido social. Para a jurista Kimberle Creshaw, é importante compreendermos que, “nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos” (CRENSHAW, 2004, p. 10). Nisso, umas pessoas possuem maior privilégio que as outras e essa posição tanto interfere na elaboração de leis, decretos, garantia ou não de direitos, da configuração do ensino, por exemplo, como também, em sua maioria, são pensadas a partir dessas distinções. Para Creshaw (2002) uma das melhores formas de compreender como a interseccionalidade age é imaginarmos uma avenida. Segundo a autora, “o tráfego, os carros que trafegam na intersecção, representa a discriminação ativa, as políticas contemporâneas que excluem indivíduos em função de sua raça e de seu gênero” (CRENSHAW, 2004, p. 11). Deste modo, algumas marcações sociais agem de forma mais intensa sobre outras. Reflexos disso podem ser percebidos nos salários, cargos, jornada de trabalho, propostas educacionais, exclusões, dentre outros.
Por pânico moral, Anthony Giddens e Philip Sutton (2016), nos indicam como sendo, “reacción «societal» exagerada frente a un determinado grupo o un tipo de comportamiento, que se entiende como síntoma de un malestar social y moral más general” (GIDDENS; SUTTON, 2016, p. 234). Nesse sentido, o pânico moral pode ser compreendido como uma reação as transformações sociais dos quais um determinado grupo não aceita.
Cowan (2016), aprimora as observações sobre pânico moral e observou como existiu a reação de grupos integrantes do governo ditatorial para conter mudanças culturais que refletiam na juventude, em especial a sexualidade. Para o autor, a juventude da época foi compreendida como subversiva por demostrar maior interesse no uso de cigarro, bebidas, sexualidade, dentre outras atitudes das quais grupos conservadores as considerava impróprias. Para Cowan, a reação desses grupos, junto do governo, foi intervir em deferentes âmbitos sob a tentativa de inibir tais mudanças e punir quem as manifestasse, provocando assim um pânico moral. Para o autor, o ensino escolar não escapou dessas imposições. Decretos, materiais didáticos, por exemplo, deveriam atender aos propósitos dos interesses da ditadura. Nisso, a concepção de espaços de poder e dominação como restritos ao masculino tomaram novas proporções e refletiram no ensino, como uma forma de masculinizar os homens do futuro para conter novas mudanças (COWAN, 2016).
Tendo em vista a compreensão da atuação do SOE na Escola Tiradentes, as fontes selecionadas para esta pesquisa foram analisadas a partir dos estudos da interseccionalidade com a observação dos marcadores sociais de gênero, raça, classe, idade, escolaridade, e dos estudos sobre pânico moral, por compreender que
Os documentos fornecem informações pertinentes que auxiliam na compreensão da proposta de ensino desenvolvida, como afastamentos e aproximação com os interesses de governantes da ditadura e de parte da sociedade civil que apoiava a manutenção do modelo político.
A equipe do SOE desenvolvia diferentes atividades ao longo do ano. Pesquisa com pais, entrevista com estudantes, avaliações, testes de aptidão profissional, dentre outras formas utilizadas para “sondar as aptidões”, após o encerramento do ano letivo, eram agrupadas e encadernadas em formato capa dura. Na capa as indicações: Serviço de Orientação Educacional (SOE) e o respectivo ano.
Os documentos foram consultados no arquivo do Colégio Tiradentes, localizado em Curitiba. A instituição encerrou as atividades de ensino em 2021, quando o governo do estado fechou a instituição. Quando desenvolvida a pesquisa, os documentos não encontravam em situação apropriada para sua guarda, sendo o arquivo uma sala em que o espaço era dividido para armazenar outros equipamentos, como o de esporte, carteiras, giz, dentre outros. A coleta dos documentos foi realizada entre julho de 2018 e julho de 2019. Foram fotografadas e armazenadas em acervo pessoal do pesquisador. Nesta pesquisa foi priorizado os relatórios dos anos de 1977-1984, marcando a data do primeiro relatório encontrado e o recorte final da pesquisa. Sendo que em 1983 foi extinta a obrigatoriedade da formação para o trabalho, mas mantida no ano seguinte.
3 Resultados e Discussão
Para Romanelli (1998), no Brasil, desde a década de 1930, quando foram desenvolvidas as primeiras legislações para a educação escolar do país, a educação para o trabalho auxiliou como um processo para reconfigurar a desigualdade social existente. Mesmo que o ensino escolar tenha passado por um lento processo de popularização, principalmente na década de 1930, ainda existiam distinções que contribuíram para reforçar principalmente a desigualdade de classe. Essa observação pode ser justificada junto a análise das escolas técnicas para a formação dos filhos da população trabalhadora, ou em instituições educacionais que ofereciam o regime de internato, destinada principalmente à formação de “jovens trabalhadores”, sendo essa vista como uma tentativa de solucionar distintos problemas sociais (ROMANELLI, 1998; BOEIRA, 2012).
Junto as configurações sociais a partir da condição de classe social, as legislações educacionais, ao mesmo tempo que acompanharam os debates em torno da compreensão sobre a infância, também contribuíram para firmar novos olhares sobre uma parcela da população. Como destaca Sílvia Maria Fávero Arend, “[...] as pessoas entre 0 e 18 anos passaram a ser consideradas ‘seres em formação’, tanto do ponto de vista corporal quanto psicológico” (AREND, 2013, p. 70). Assim, na medida em que foram sendo desenvolvidas novas propostas de ensino, a infância ao mesmo tempo em que serviu para delimitar as prescrições e interesses educacionais foi constituída sobre a introjeção de que esse grupo era dotado de direitos (AREND, 2015). Ou seja, tanto a história da educação como a compreensão sobre a infância estão entrelaçada por uma linha tênue em que as vezes parece difícil separá-las.
No Brasil, o modelo educacional proposto por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº. 4.024, de 20 de dezembro de 1961, expôs um projeto de ensino que contribuiria para construir maiores oportunidades tanto para o ensino como por meio dele. Principalmente para as meninas, que, a partir desse documento, passaram a receber, ao menos na letra da lei, uma educação escolar sem o propósito de reforçar as distinções e desigualdades de gênero. Uma ruptura com modelos de ensino desenvolvidos até aquele momento, em que o ensino das estudantes do gênero feminino, tinha entre os objetivos, o reforço e a manutenção das distinções desiguais de gênero, principalmente em relação ao casamento, cuidado com os/as filhos (ZALUSKI, 2018).
Quando instituída a LDB nº. 5.692/1971, sua maior repercussão se deu por ter tornado o ensino técnico obrigatório. Longe de representar apenas uma ruptura com as propostas de ensino desenvolvidas até aquele momento, essa legislação expressa parte dos interesses políticos almejados para a construção de um futuro desejado por meio do ensino escolar. Ou seja, a elaboração dessa lei não pode ser dissociada do contexto de sua produção e das diferentes influências recebidas tanto para a elaboração da legislação, como as modificações no ensino escolar e na sociedade desencadeadas a partir dela.
Entre as modificações instauradas a partir da LDB de 1971, a obrigatoriedade da formação de ensino técnico, voltado ao mercado de trabalho, para todos/as os/as estudantes, pode ter sido a de maior impacto. Pois, desde o ensino fundamental de 5ª a 8ª série, por meio da “sondagem de aptidão”, e amplificada no ensino médio, em que a conclusão do ensino estava condicionada ao cursar uma formação técnica com duração de três anos, a condição em ser estudante os/as colocaria ainda como futuros profissionais qualificados para assumir distintos postos de trabalho.
Junto a isso, a idade dos/as estudantes é outro ponto que merece atenção. Por meio da LDB nº. 5.692/1971 foi estabelecida a obrigatoriedade do ensino a partir dos sete anos de idade, e se antes deveria ser ofertado o ensino até os 12 anos, com a nova legislação passou até os 14 anos de idade, momento em que se estivessem adequados à “idade escolar” condizente com a série e idade, os/as estudantes concluíram o ensino fundamental. Essa ampliação do percurso educacional pode ser percebida em conjunto com dois fatores que possuem estreita aproximação. O primeiro, da compreensão de que o ensino passa a ser compreendido como direito. No segundo, da ampliação das fases da vida, momento em que distintos discursos sobre a adolescência ganham maior visibilidade em diferentes espaços, entre eles na educação. Nesse sentido, a passagem pelas fases da vida, principalmente a adolescência, deveria seguir um percurso trilhado por meio do ensino, não bastava apenas aperfeiçoar-se como futuro trabalhador/a, era preciso caminhar em conjunto com os ideais compartilhados pelo governo ditatorial.
No Estado do Paraná, com a intenção de atender aos preceitos da LDB nº. 5.692/1971, foi organizada uma força tarefa para adequar um modelo de ensino que dialogasse com a legislação nacional, mas que estivesse em consonância com a proposta política econômica do Estado, desenvolvida desde o início da década de 1960.
Desde o início da década de 1960 o estado do Paraná passou por constantes reformulações educacionais. Parte delas esteve aliada a projetos políticos de governo em que o ensino escolar integrava as projeções de futuro endereçadas principalmente ao crescimento econômico. A capital, Curitiba, está entre as cidades que mais sentiram o impacto tanto do desenvolvimento industrial e reconfiguração de um novo cenário urbano, como das mudanças provocadas no âmbito das relações de trabalho gradativamente intensificadas por novas exigências de qualificação profissional. Parte disso pode ser observado na configuração social da cidade e sua região metropolitana junto do crescimento populacional e a ampliação dos espaços urbanos (ZALUSKI, 2023).
Quando promulgada a LDB nº. 5.692/1971, por cargo da Secretaria Estadual da Educação e Cultura (SEDUC), foi organizado uma “Equipe de Currículo”, em que professores/as estiveram encarregados/as de desenvolver um modelo curricular que conciliasse os objetivos da legislação nacional e estivesse de acordo com os interesses político administrativos do estado. O modelo curricular foi finalizado e impresso na Revista Currículo, em 1973, elaborada com a intenção de informar os/as professores/as sobre distintos assuntos educacionais.
Assim, tendo em vista a obrigatoriedade para o ensino de formação técnica em nível nacional, a “Equipe de Currículo" deveria sugerir disciplinas que atendessem as áreas de: Técnicas Agrícolas, Técnicas Industriais e Técnicas Comerciais. O modelo proposto para o Estado do Paraná atribuiu-se maior atenção às duas últimas. Acredito que esse olhar mais atento às áreas do comércio e indústria ocorreu devido à projeção atribuída à Curitiba, momento em que se vivenciava na cidade a ampliação de trabalho nessas áreas. E, junto desse modelo político econômico que se desenhava, as projeções sobre a masculinidade contribuíram para endereçar novas formas de experenciar a masculinidade a partir de relações de trabalho naquele momento compreendidas como novas. Ou seja, a concepção de ensino da época estava respaldada sobre as definições e delimitações impostas a partir das distinções sociais de gênero. Nesse novo mercado financeiro, as atividades consideradas como poder, tomadas de decisão, gerenciamento, dentre outras, competiam aos homens. Assim, o modelo de ensino a ser desenvolvido privilegiaria os estudantes do gênero masculino por considerá-los como aptos (e como direito) em assumir tais profissões no futuro.
Como forma de acompanhar a implementação do modelo curricular exigido para atender a LDB nº. 5.692/1971, e diante da elevada procura de matrículas no Colégio Estadual do Paraná (CEP), localizado no centro da cidade, a equipe da secretaria da educação do estado em conjunto com diferentes instituições escolares, por meio do Decreto nº. 1358, de 23 dezembro de 1975, organizaram e autorizaram o Complexo de Ensino Estadual do Paraná composto por oito instituições, como já destacado anteriormente.
O Colégio Estadual do Paraná possui uma longa trajetória na educação escolar paranaense, principalmente para Curitiba. Construído ainda em 1846, anterior a emancipação política da capital, desenvolveu distintas propostas educacionais que tanto marcam como interferiram na história da educação. Na década de 1940, dada as especificidades locais, crescimento populacional, aumento da procura de matrícula e relações políticas, o colégio recebeu um novo prédio em outro endereço. Nele, como uma entrada na sede administrativa do estado, como um lugar de poder, esteve por muitos anos como o maior colégio da América Latina. Sua arquitetura imponente esteve aliada tanto aos interesses educacionais daquela época como em consonância com debates internacionais, entre eles motivados pela Segunda Guerra Mundial (CHAVES JUNIOR, 2004).
Na década de 1970, momento de implementação da LDB nº. 5.692/1971, a instituição era procurada tanto por sua estrutura física, como devido a longa trajetória educacional, como um reconhecimento da qualidade de ensino oferecida e da equipe administrativa e de professores/as. Cabe destacar que a instituição possui uma estrutura física de destaque, principalmente na parte esportiva, pois manteve-se durante anos como a única instituição a possuir quadra de esporte e piscina olímpica, por exemplo, para atender às atividades de educação física. Assim, a organização como Complexo de Ensino tendo o Colégio Estadual como instituição centro, serviu tanto como uma forma de conter a procura pela instituição, como para projetar um modelo educacional para todo o estado a partir de uma experiência local.
O funcionamento do Complexo de Ensino foi organizado com base nas distinções de gênero e idade. No período da manhã estudavam os estudantes do gênero masculino, sendo o período da tarde destinado às estudantes do gênero feminino. Nessa distribuição estava ainda a atenção a série/idade, em que as turmas de 5ª, 6ª e 7ª séries estudavam nas “escolas extensões”, como a Escola Tiradentes, sendo a 8ª série frequentada no Colégio Estadual do Paraná. Entre os motivos, as atividades esportivas dessa série exigiriam equipamentos específicos, entre eles as quadras e piscina. Ou seja, as instituições do Complexo de Ensino deveriam estar em consonância umas com as outras, principalmente em seguir a proposta curricular e organização no quadro de horários, para que todos/as pudessem usufruir dos espaços.
Em relação à formação para o trabalho, de 5ª a 8ª séries, os/as estudantes deveriam receber uma educação endereçada às relações de trabalho. Como forma de ampliar e melhorar as propostas das disciplinas como “Técnicas Industriais, Técnicas de Serviços”, foi criado, em 1975, o Serviço de Orientação Educacional (SOE), que tinha como objetivo “levar o discente a realizar escolhas “conscientes”, “inteligentes” e “responsáveis” para realizar com acerto e convicção as suas escolhas profissionais e sociais” (SILVA, 2012, p. 38).
O SOE, em nível nacional, foi desenvolvido em diferentes contextos ao longo do século XX. Durante a ditadura civil-militar o Serviço de Orientação foi intensificado como uma tentativa tanto de auxiliar na “suposta escolha” profissional, mas principalmente como uma forma de controlar as ações dos/as discentes frente aos interesses do governo ditatorial instaurado no país, principalmente em relação à manutenção de valores morais vinculados às distinções (e desigualdades) de gênero com o suposto combate à subversão.
Na Escola Tiradentes, as atividades do Serviço de Orientação Educacional proporcionaram a construção de distintos documentos utilizados para o acompanhamento dos/as discentes. Desde sua criação em 1975, o SOE contou com um grupo de professores/as que tinham o objetivo de atender especificamente os/as estudantes para auxiliar na escolha profissional. Nesse acompanhamento, foram elaboradas fichas com levantamento de idade, altura, características da organização familiar, condições econômicas, tempo de lazer e demais atividades desenvolvidas, acompanhamento médico, questionários de interesse profissional, dentre outros. Esses materiais, além dos discursos pedagógicos, foram desenvolvidos em conjunto com estudos vinculados às áreas da medicina e psicologia.
A instituição preservou parte dos materiais elaborados pelo Serviço de Orientação Educacional. Posterior ao acompanhamento anual, a partir de 1977, os documentos foram reunidos e encadernados no formato brochura (capa dura). Manteve-se a divisão de meninos nas turmas da manhã e meninas na turma da tarde, a organização elaborada pela equipe da instituição reuniu informações importantes para compreender parte do cotidiano escolar, das atividades do SOE e das configurações sociais daquele contexto.
De acordo com relatório do SOE, os/as estudantes, ao chegarem à 5ª série, estariam na passagem da infância para a pré-adolescência. Nesse percurso, os/as estudantes “diferem marcadamente uns/umas dos/as outros/as quanto ao nível de maturidade física, interesse e necessidades” (Curitiba,1980). A tentativa em constituir o adolescente desejável esteve empenhada na compreensão de que a equipe do SOE deveria agir em duas grandes áreas:
A necessidade de incorporação de hábitos consideráveis saudáveis no que tange a saúde física e mental está associada a duas questões. A primeira, relativa à preparação do corpo para exercer as relações de trabalho de forma disciplinada. A segunda, a questões de ordem moral, para que os/as estudantes evitassem “estímulos narcóticos”, como indica o documento, tais como o consumo de cigarros e de outras substâncias consideradas tóxicas. Fator esse que de certo modo contribuiria para reforçar as ações que buscavam demarcar os considerados subversivos e os não subversivos, os aptos e não aptos para o trabalho, tal como pregava o pânico moral. Essa formação só seria garantida se tanto o SOE como as aulas contribuíssem para atender ao que o documento aponta como “necessidades básicas dos alunos”. Estas, além de construírem hábitos de estudos para melhorar o rendimento na escola, haviam sido desenvolvidas ao longo de cada ano para garantir que a formação dos adolescentes estivesse apoiada no entendimento de abarcar as relações entre si, na sua formação social, que, com base no documento deveria, “pertencer a um grupo, ter um “status” e de ser respeitado pelo grupo”, fator que esse que estava envolto à valorização das distinções de gênero com a compreensão de que, “orientação para conhecimento e compreensão adequados, dos assuntos sexuais; recreação sadia, atividades positivas e vida ao ar livre; ajustamento heterossexual; ajustamento social através de atitudes de cooperação e de competição” (CURITIBA, 1980, s/p). E, tendo essa delimitação bem definida na formação dos estudantes, a partir do documento, seriam garantidas as manutenções desiguais de gênero a partir da concepção de que os estudantes meninos foram masculinizados e as meninas feminilizadas. Feito isso, conforme o documento, daria sequência para, “participação do aluno em oficinas especializadas, laboratórios, biblioteca, visitas, excursões e palestras, onde o aluno encontre meios de desenvolver suas aptidões e interesses” (CURITIBA, 1980, s/p).
Posterior entrevista com os pais para mapear a condição social dos/as estudantes e da configuração familiar da qual residia, e do reforço das questões morais em torno da compreensão sobre o trabalho e sexualidade, outra etapa da “sondagem de aptidão” consistia em responder o teste vocacional. A partir das respostas organizadas em um modelo padrão, somava-se a numeração indicada pelo estudante para cada pergunta realizada. Solicitava-se que o teste fosse respondido com veracidade e exatidão e que cada aluno refletisse sobre “por que gosto tanto de fazer isso”. Os estudantes deveriam responder ao seguinte questionário:
O modelo de teste utilizado pela equipe do SOE do Colégio Tiradentes era baseado nas proposições em livro publicado pelo francês Pierre Gilles Weil. Pesquisador sobre a orientação profissional e a psicologia do trabalho, Weil migrou para o Brasil no ano de 1948. Uma década mais tarde, foi “chefe do Departamento de Orientação e Treinamento do Banco da Lavoura de Minas Gerais e professor na Universidade Federal de Minas Gerais –UFMG” (Conselho Federal de Psicologia, 2005, p. 01). Após a contagem de pontos do questionário, a orientadora vocacional deveria relacionar as informações com base nas ilustrações correspondentes às áreas de interesse, como pode ser observado na imagem a seguir:
Como comentado, durante a década de 1960 existiu um lento processo de avanço das meninas e mulheres ao espaço educacional. Junto a essa mudança gradativa, comparada a momentos anteriores, a educação das meninas também deveria proporcionar maior possibilidade de igualdade. Assim, ao menos na letra da lei, o currículo das meninas passou a ser o mesmo dos meninos. Quando instituída a LDB nº. 5.692/1971, não existiram de forma explícita recomendações que levassem em consideração reforçar as desigualdades de gênero. Contudo, práticas educacionais e demais instruções pedagógicas e até mesmo a organização da instituição não isentaram a manutenção ou reforço de desigualdades de gênero.
A imagem acima integra parte de um conjunto de atividades que buscam orientar os/as estudantes em distintas áreas de atuação profissional. Contudo, mesmo com um lento processo de conquista das meninas para uma educação igualitária, a proposta desenvolvida contribui para direcionar os/as estudantes com base em diferenças convencionais de gênero instituídas ao longo do tempo.
A partir das recomendações e atividades desenvolvidas pelo SOE da Escola Tiradentes, junto da compreensão teórica sobre pânico moral, pode ser observado que, com base nos documentos, a estrutura de ensino foi sustentada a partir de um ideal de reforço das distinções de gênero. Com a associação da sexualidade considerada apropriada para a formação dos estudantes, a escolha profissional a partir de interesses voltados a seu gênero consistiria em uma forma de regular a sociedade como delimitar a atuação dos sujeitos.
A partir de teste vocacional, com forte indicação à valorização da pluralidade de profissões a serem escolhidas para os meninos, para as meninas restringiu atividades que estavam envolta ao reforço da naturalização das distinções de gênero. Temos então impactos do pânico moral na configuração do ensino. Com base no conjunto de possíveis profissões levantadas pelo teste, as meninas só poderiam assumir atividades voltadas ao cuidado. Para os estudantes do gênero masculino, junto dessa delimitação, e com o aparecimento de novas profissões na década de 1970 tais como as da grande área da administração, o ensino desenvolvido esteve respaldado em um interesse em masculinizar a educação por meio da vigilância da heterossexualidade e da extensão dessa para as tomadas de poder e liderança.
4 Considerações finais
“Tratar; Cuidar; Curar; Educar; Criar; Cultivar”, foram direcionados às atividades profissionais destinadas às meninas. Ao longo do tempo, a distribuição dessas atividades foi constituída com base na distinção e naturalização das desigualdades de gênero. Como em relação ao cuidado e criação das crianças, como correspondentes unicamente às meninas/mulheres.
á em relação aos meninos, sem se esgotar a apenas um exemplo, o rol de escolhas e alternativas destinada à educação profissional masculina, além de possuir distintas possibilidades, as imagens e adjetivos atribuídos a cada uma integram parte das desigualdades de gênero constituídas ao longo do tempo e reforçadas pelo Serviço de Orientação Educacional. Com base no questionário que induzia a seguir uma resposta e reafirmada por meio das imagens, as atividades profissionais que exigem cálculo, força, liderança, tomada de decisões, como exemplo, foram dimensionadas como correspondentes aos meninos. Ou seja, de forma naturalizada a distribuição de tarefas e recomendações profissionais tinha como respaldo a manutenção de atividades desiguais, pensadas e encaminhadas com base na distinção de gênero. Caso contrário, desviar a essa norma existiria uma retalhação moral daqueles que passariam a ser considerados como subversivos.
É importante destacar que as transformações provocadas nas relações de trabalho também atingiram o modelo de ensino desenvolvido no estado, em especial na capital, Curitiba. Entre as mudanças, novos setores de trabalho, principalmente nas áreas de administração, construção civil e comércio, tiveram grande visibilidade. Quando configurado tanto o modelo curricular como as atividades da SOE, essas profissões receberam uma atenção especial, para que existisse a qualificação profissional de estudantes para atuarem nessas áreas. Assim, com base na observação da documentação do SOE, alteraram-se as relações de trabalho, principalmente com o surgimento de novas profissões. Contudo, essas modificações não visavam proporcionar a ruptura com as desigualdades de gênero estruturadas de longa data.
Para tanto, ao longo das modificações curriculares desenvolvidas tanto para atender distintas propostas educacionais, interferência do governo ditatorial ou até mesmo as transformações no cenário profissional, tanto a proposta em nível estadual como a ação levada a cabo no Complexo Educacional, principalmente na Escola Tiradentes, podem ser interpretadas como uma reconfiguração das distinções de gênero que buscava orientar, qualificar e construir “um modelo” de masculinidade adequada para adolescentes, estudantes e futuros trabalhadores.
As recentes modificações no modelo curricular no estado do Paraná, à luz das observações do historiador Henry Rousso, de um “passado que não passa”, nos instiga ainda a refletir sobre como a história está em constante transformação, mas, que, diante dos assombros de um passado que ainda nos incomoda, provoca efeitos e insiste no presente. Tal como destaca François Dosse, “a história do tempo presente está na intersecção do presente e da longa duração. Esta coloca o problema de se saber como o presente é construído no tempo” (DOSSE, 2012, p. 06).
Resumo
Main Text
1 Introdução
2 Metodologia
3 Resultados e Discussão
4 Considerações finais