Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
Quando a Pedagogia encontra o punhetódromo: masturbação em uma Comunidade de Atendimento Socioeducativo de Salvador
Sandro Costa Correia; Leandro Colling
Sandro Costa Correia; Leandro Colling
Quando a Pedagogia encontra o punhetódromo: masturbação em uma Comunidade de Atendimento Socioeducativo de Salvador
When Pedagogy meets the punhetódromo: masturbation in the Community of Social Assistance in Salvador
Cuando la Pedagogía se encuentra con el punhetódromo: la masturbación en una Comunidad de Asistencia Social de Salvador
Educação & Formação, vol. 6, núm. 2, e4446, 2021
Universidade Estadual do Ceará
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: O texto analisa como a masturbação, realizada por adolescentes e jovens em situação de privação de liberdade, em uma unidade do sistema socioeducativo de Salvador, constitui-se em um importante foco para pensar sobre o controle da segurança coletiva, a reiteração e a subversão das normas de sexualidade dentro dos alojamentos e demais espaços de convivência. Por isso, argumenta-se que a masturbação pode ser utilizada por uma pedagogia que considere o erotismo como parte fundamental da vida das pessoas, sem negligenciar a existência das práticas sexuais no âmbito da privação de liberdade e como elas podem estabelecer vínculos que ultrapassem o lugar da violência e gerem solidariedade, prazer e aprendizado.

Palavras-chave: SexualidadeSexualidade,PedagogiaPedagogia,SocioeducativoSocioeducativo.

Abstract: The text analyzes how masturbation, carried out by adolescents and young people in a situation of deprivation of liberty, in a unit of the socio-educational system of Salvador, constitutes an important focus for thinking about the control of collective security, reiteration and subversion sexuality norms within the accommodation and other living spaces. Therefore, it is argued that masturbation can be used by a pedagogy that considers eroticism as a fundamental part of people's lives, without neglecting the existence of sexual practices in the context of deprivation of liberty and how they can establish bonds that go beyond the place of violence and generate solidarity, pleasure and learning.

Keywords: Sexuality, Pedagogy, Socio-educational.

Resumen: El texto analiza cómo la masturbación, realizada por adolescentes y jóvenes en situación de privación de libertad, en una unidad del sistema socioeducativo de Salvador, constituye un foco importante para pensar en el control de la seguridad colectiva, la reiteración y la subversión de las normas de sexualidad dentro del alojamiento y otros espacios de sociabilidad. Por ello, se sostiene que la masturbación puede ser utilizada por una pedagogía que considere el erotismo como parte fundamental de la vida de las personas, sin descuidar la existencia de prácticas sexuales en el contexto de privación de libertad y cómo ellas pueden establecer vínculos que van más allá del lugar de la violencia y generar solidaridad, placer y aprendizaje.

Palabras clave: Sexualidad, Pedagogía, Socioeducativo.

Carátula del artículo

Dossiê

Quando a Pedagogia encontra o punhetódromo: masturbação em uma Comunidade de Atendimento Socioeducativo de Salvador

When Pedagogy meets the punhetódromo: masturbation in the Community of Social Assistance in Salvador

Cuando la Pedagogía se encuentra con el punhetódromo: la masturbación en una Comunidad de Asistencia Social de Salvador

Sandro Costa Correia*
Universidade Federal da Bahia, Brazil
Leandro Colling**
Universidade Federal da Bahia, Brazil
Educação & Formação, vol. 6, núm. 2, e4446, 2021
Universidade Estadual do Ceará

Recepção: 01 Dezembro 2020

Aprovação: 16 Março 2021

Publicado: 30 Março 2021

1 Introdução

Este artigo trata de alguns achados de uma pesquisa (CORREIA, 2020) que identificou e analisou os problemas de gênero e sexualidade vivenciados por adolescentes e jovens em situação de privação de liberdade em duas Comunidades de Atendimento Socioeducativo de Salvador (Case), uma masculina e outra feminina, geridas pela Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac), órgão vinculado à Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia.

Através do diálogo interdisciplinar entre os estudos culturais, de gênero e sexualidade, entrevistas1 realizadas com profissionais das diversas áreas de atuação na Fundac e a própria experiência de trabalho de um dos autores deste texto na instituição, a pesquisa demonstrou como os problemas de gênero e sexualidade encontrados no ambiente de privação de liberdade são decorrentes de concepções originais, essenciais e unívocas de sexo/gênero/sexualidade perpetradas, ao longo da história, por uma cultura impregnada por hierarquias, desigualdades, ignorâncias e tabus sexuais e de gênero.

Verificamos como, no sistema socioeducativo, os direitos sexuais e de gênero ainda são considerados de segunda ordem, secundários ou supérfluos e estão longe de serem efetivamente garantidos como direitos humanos fundamentais, revelando contradições profundas entre os avanços legais de promoção e garantia dos direitos sexuais e a manutenção de tecnologias punitivas, que servem, sobretudo, para reificar a ordem hegemônica masculinista, cisheteronormativa (VERGUEIRO, 2018) e lgbtfóbica.

Os principais problemas identificados, em ambas as unidades finalísticas da Fundac, consistem na manutenção dos binarismos e normatividades de sexo/gênero/ sexualidade, na infantilização e negligência da atividade sexual de educandos/as, no proibicionismo institucional sobre as práticas homossexuais consentidas, na utilização de ritos perversos de dominação e exploração sobre aqueles/as considerados/as mais subalternos/as, no estranhamento e patologização de pessoas trans, na negação da existência legítima de pessoas LGBT+ e na subutilização de todas essas questões como temas geradores para desconstrução de hierarquias e desigualdades interseccionais.

Em contrapartida, evidenciamos também o surgimento de pulsões de vida entre educandos/as pelo estabelecimento de relações solidárias, amorosas e transgressoras, bem como entre os/as profissionais, através do engajamento na implementação de programas que reconhecem, promovem e garantem os direitos humanos e sexuais e de gênero. Isso revela os caminhos predominantemente pedagógicos, políticos e radicalmente éticos que levam em consideração os problemas de gênero e sexualidade de jovens e adolescentes privados/as de liberdade como oportunidades de mudança, desenvolvimento e transformação de vidas de socioeducandos/as, socioeducadores/as e da instituição.

Neste artigo, vamos problematizar apenas um recorte da pesquisa: a prática da masturbação na Case Masculina. Primeiro trataremos, através de estudos muito conhecidos, sobre como a masturbação passou a ser controlada e depois analisaremos como as vigilâncias e subversões ocorrem na instituição em relação ao chamado “sexo solitário” (LAQUEUR, 2007)2. Por fim, propomos que essas experiências sejam potentes para pensar em instrumentos pedagógicos que promovam a socialização de bens entre as pessoas, cultivem a generosidade, a convivência pacífica, o desenvolvimento de autonomia e o direito ao prazer, à intimidade, à privacidade e à liberdade dos internos que cumprem medidas socioeducativas de internação.

2 A história da masturbação

Foucault (2010) defendeu a tese de que, a partir do século XVII, a “masturbação” esteve dentre as três figuras de representação da anomalia humana difundidas pelo saber-poder das instituições jurídicas, médicas e religiosas, juntamente com as figuras do “monstro” e do “indivíduo a ser corrigido”. Isso porque essas três figuras contradiriam as leis dos homens, da natureza e da divindade:

De fato, o monstro contradiz a lei. Ele é a infração, e a infração levada ao ponto máximo. [...] O que faz a força e a capacidade de inquietação do monstro é que, ao mesmo tempo que viola a lei, ele a deixa sem voz. Ele arma uma arapuca para a lei que está infringindo. [...] É o princípio de inteligibilidade de todas as formas - que circulam na forma de moeda miúda - a anomalia. (FOUCAULT, 2010, p. 48).

É a partir da própria existência do monstro que a medicina e o sistema jurídico da idade clássica vão ser questionados, já que não darão conta da hibridez, da mistura contraditória que a natureza revela para o mundo civilizado, que pretende compartimentalizar os seres humanos em espécies definitivamente únicas, em identidades e comportamentos fixos, essenciais e dignos de representação. Os seres siameses, os seres híbridos, os então chamados hermafroditas, vão se constituir, desse modo, em figuras de oposição ao sistema jurídico-natural-divino constituído. Os/As hermafroditas, então, vão atormentar os saberes médicos e jurídicos, perturbar a ordem binária dos sexos, as leis natural e divina que pressupõem que apenas se nasce homem ou mulher.

Inúmeras pessoas hermafroditas, hoje chamadas intersexo, foram condenadas à morte, queimadas e enforcadas em praça pública simplesmente pelo fato de serem descobertas com essa ambiguidade sexual, considerada anormal e sem direitos até os dias de hoje (GARBELOTTO; COLLING, 2018).

O indivíduo a ser corrigido, a segunda figura de representação do anormal, que se fortaleceu entre os séculos XVII e XVIII, seria de um contexto mais limitado e mais próximo que o/a hermafrodita, não mais universal ou cosmológico. Emergia do ambiente mais próximo das instituições de vizinhança. Vai aparecer do jogo de controle de poder e saber existente entre família, comunidade, escola, oficina, igreja, rua, bairro, clínica, polícia, Estado. Se “[...] o monstro é, por definição, uma exceção, o indivíduo a ser corrigido é um fenômeno corrente” (FOUCAULT, 2010, p. 49).

O indivíduo a ser corrigido vai, sistematicamente, ocupar os interesses e investimentos de controle da sociedade nos séculos seguintes. E é nesse prolongamento das estratégias de identificação, controle e correção dos comportamentos desviantes que, no período que compreende o final do século XVIII e início do XIX, o fenômeno da masturbação se tornará tema central para os interesses da cultura dominante.

O masturbador, a criança masturbadora, é uma figura totalmente nova no século XIX (é na verdade própria do final do século XVIII), e cujo campo de aparecimento é a família. É, inclusive, podemos dizer, algo mais estreito que a família: seu contexto de referência não é mais a natureza e a sociedade como [no caso de] o monstro, não é mais a família e seu entorno como [no caso de] o indivíduo a ser corrigido. É um espaço muito mais estreito. É o quarto, a cama, o corpo; são os pais, os tomadores de conta imediatos, os irmãos e irmãs; é o médico - toda uma espécie de microcélula em torno do indivíduo e do seu corpo. (FOUCAULT, 2010, p. 50).

Para Foucault (2010), é assim que vai se constituir o segredo universal do chamado onanismo. É nos entremeios, nas fricções das relações familiares que essa prática suscitará nos indivíduos possibilidades de liberdade, autonomia, desejos e gozos, mas também vai sofrer os impactos das interdições, monitoramentos, culpabilizações, punições e estratégias de correções sobre os sujeitos: “Acho que podemos dizer, para situar essa espécie de arqueologia da anomalia, que o anormal do século XIX é um descendente desses três indivíduos, que são o monstro, o incorrigível e o masturbador” (FOUCAULT, 2010, p. 51). E é desse modo que essa construção de saber-poder pela medicina e pelos sistemas jurídico, religioso, pedagógico, moral e cultural atravessará séculos e continuará a exercer influências sobre os sujeitos, independentemente de classe, geração, raça, sexo, gênero, ato infracional, como veremos a seguir.

Laqueur (2007) defende a possibilidade de a masturbação ser um dos fenômenos sexuais mais democráticos e universais. Universal pela sua própria amplitude de alcance sobre todos os indivíduos, de todos os lugares, nacionalidades e culturas. E democrático pela oportunidade de acesso ao domínio do próprio corpo, do prazer e da intimidade dada a todos/as. Para Laqueur (2007), uma das principais potências da masturbação consiste no questionamento da ordem heterossexual, do patriarcalismo e do sexismo. Nesse sentido, defende o caráter inclusive feminista da prática masturbatória, já que liberta, especialmente, as mulheres da pressuposição de homens para a satisfação sexual feminina, e vice-versa. Ao dissociar o sexo da função reprodutora, a masturbação liberta tanto homens quanto mulheres e legitima, universalmente, o gozo sem fins reprodutivos. Abala a presunção do matrimônio para a existência de atividade sexual, liberta o sujeito da necessidade do casamento, questiona as perspectivas patrimonialistas do casamento e descentraliza a satisfação sexual da esfera masculina, tornando o prazer sexual acessível a todos, todas e todes.

Ao contrário dos homens, que sempre tiveram acesso incentivado aos prostíbulos, é com a prática da masturbação que as mulheres, por exemplo, terão experiências sexuais para além da necessidade da existência de matrimônio, ou seja, suas primeiras e reiteradas experiências sexuais extraconjugais. A masturbação reforça os ideais feministas na perspectiva libertadora da confinação ao espaço doméstico e do celibato anterior ao matrimônio, estimulando o autoconhecimento e a autorrealização das mulheres através das possíveis viagens por paisagens eróticas povoadas por sujeitos com os quais estabelecem contatos sensoriais a partir do manejo de suas fantasias, memórias e imaginações.

Como demonstra Laqueur (2007), isso, no entanto, não isentou as pessoas das perseguições mais cruéis e danosas para controle, correção e punição daquelas consideradas anormais e desviantes. Pelo contrário, a emergência da medicina e antropologia como ciências na modernidade, em articulação com o saber-poder do sistema teológico e jurídico, contribuiu muito para transformar o sexo, as práticas sexuais e a sexualidade em alvos preferenciais de controle, interdição e correção. Nos séculos XVIII e XIX, o papel ético moral da medicina sobre os corpos dos indivíduos, a obrigação da heterossexualidade, a vigilância sobre o celibato feminino, a exigência do casamento, a realização sexual condicionada à reprodução da espécie, a analogia protestante e cristã da energia erótica sexual heterossexual como a imagem e semelhança da ligação poderosa entre os anjos e Deus promoviam a legitimação da necessidade de destinação da energia sexual para a procriação, e não para o prazer. Constituíram-se, assim, em argumentos para a inibição, culpabilização, correção e punição dos indivíduos praticantes de atos considerados desviantes ou anormais, tais como a masturbação.

O problema com a masturbação não era que consistira em uma espécie de prazer, mas que não o era. Como muito, era um falso prazer, uma perversão do real. Pelo geral, o naturalismo médico e a antropologia especulativa apoiavam a correção e a inocência moral da relação heterossexual. Inclusive o amor não matrimonial não era tão mau, na opinião de certos círculos médicos; alguns facultativos chegavam a propor a prostituição como possível cura para o hábito do sexo solitário3. (LAQUEUR, 2007, p. 227).

O potencial libertário, autônomo, autogestionado das práticas sexuais “solitárias” amedrontou e apavora, até hoje, aqueles que pretendem controlar os comportamentos, os impulsos e os desejos mais subjetivos dos indivíduos e coletividades. Ainda sofremos os reflexos da cultura patologizante, punitiva e culpabilizadora do “sexo solitário”, ao mesmo tempo que convivemos contraditoriamente com os múltiplos estímulos libertários do mercado de consumo capitalista neoliberal, que legitimam, sensibilizam e persuadem corpos e mentes para a erotização dos corpos e sentidos, cujo objetivo principal é a busca de prazer ininterrupto individual, passível de realização ao alcance das mãos. Agora, não apenas pelas vias anatômicas, mas por meio de prolongamentos infinitos bioquímicos e cibernéticos, profusão de aplicativos de encontros, sex shops, bens e serviços sexuais de todas as espécies. E não é difícil compreendermos isso, já que todos/as nós passamos, em algum momento, pela puberdade. Todos/as, como seres desejantes, vivenciamos, de diferentes maneiras, as tensões e espasmos que atravessam a masturbação e o gozo em sociedade. Cada um/a de nós, certamente, tem um caso para contar emblemático dessas dramatizações de forças normatizadoras e controladoras sobre nossos corpos e mentes.

Claro, a puberdade, o aquecimento dos humores nessa época, o desenvolvimento dos órgãos sexuais, a acumulação dos líquidos, a tensão das paredes, a irritabilidade geral do sistema nervoso, tudo isso pode explicar muito bem que a criança se masturbe, mas a própria natureza da criança em seu desenvolvimento deve ser desculpada da masturbação. (FOUCAULT, 2010, p. 211).

Nesse sentido, ainda que existam algumas variações sociais, culturais, econômicas, geracionais e sexuais entre os públicos, a puberdade nos é semelhante a todos/as, a qual não poderia ser diferente no sistema socioeducativo. Os aspectos fisiológicos e hormonais, principalmente pela fase peculiar de desenvolvimento, associados ao imperativo do gozo cultuado pela sociedade de consumo hedonista, poderiam isentar de culpa o “sexo solitário” praticado por esses/as adolescentes. Não os/as tornam, entretanto, imunes aos modelos de vigilância, correção e punição sobre as práticas sexuais aprendidas em suas infâncias e adolescências. É sobre isso que trataremos a seguir.

3 A masturbação na Case Masculina

Na Case Masculina, as antigas interdições e regulações vivenciadas pelos internos em suas famílias tendem a ser reproduzidas de maneira inversa na privação de liberdade, ou seja, aquilo que Foucault (2010) afirmou como a causa de controle da sexualidade infantil, a proteção da criança contra a atuação do contexto externo e dos contatos dos adultos sobre seus corpos, é manifestada em direção contrária na medida socioeducativa, já que, nessa condição, são os próprios adolescentes que vigiam uns aos outros para supostamente não profanarem os adultos. Talvez na tentativa de se reparar possíveis danos sofridos oriundos das relações intrafamiliares, esses adolescentes acionam mecanismos de controle e disciplinamento dos corpos de seus pares para que não explorem eroticamente as imagens de seus familiares adultos. Por meio de códigos de condutas, pactos de comportamentos e estabelecimento de regras para o exercício do direito ao “sexo solitário”, os adolescentes monitoram, autorizam e desautorizam as práticas de masturbação no âmbito da privação de liberdade.

Esse controle é exercido no intuito de conter as supostas perversidades imagináveis dos adolescentes sobre os familiares de outros. Possíveis perversidades fictícias de adolescentes sobre familiares. Fetiches sobre os corpos de familiares e profissionais. Por isso, a masturbação, na unidade masculina, está proibida nos dias de visita de familiares. Tentativa de domínio simbólico dos corpos, virtudes e purezas dos poucos afetos que restam para aqueles cujas relações afetivas e familiares foram fragilizadas pela própria condição de afastamento para a internação ou mesmo pelos danos internos anteriores.

Na mesma direção, controlar também os desejos e fetiches de adolescentes por profissionais do socioeducativo, tentando privar de liberdade, inclusive, seus pensamentos e fantasias, é um investimento também de alguns/mas profissionais. Constantemente, os educandos são advertidos sobre a possível chegada de profissionais mulheres nos alojamentos. Por isso, eles não devem se masturbar em qualquer momento e lugar. Além disso, nunca “pega bem” a prática sexual “solitária” após a saída de alguma profissional feminina cujos aspectos sensuais estimulem pensamentos eróticos. Para se supor isso, esse pensamento foi sensorialmente codificado pelo adulto.

Entre os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação, essas expectativas sobre a masturbação são inevitáveis. A própria ruptura com o mundo lá fora, onde provavelmente já experimentavam relações sexuais contínuas, eventuais ou efêmeras, leva-os a intensificar essa prática “solitária” durante a privação de liberdade para suprir a ausência das relações presenciais. De fato, os adolescentes que adentram o socioeducativo, aqueles entre 15 e 18 anos de idade, em sua maioria, são sexualmente ativos. Há evidências de experiência sexual pregressa entre eles.

Com os mais novos, a partir dos 12 anos, o próprio histórico e o contexto social no qual estão inseridos - o envolvimento em furtos, roubos e tráfico - demonstram uma vida economicamente autônoma e, por consequência, independente em diversos aspectos, inclusive na atividade sexual, já que esse fator é determinante para a comprovação da masculinidade e capacidade de assumir responsabilidades no mundo do ato infracional. Culturalmente, a atividade sexual é um rito incentivado como marco para adentrar na vida adulta. Se tornar um adulto autônomo pressupõe fazer uso do seu próprio corpo com quem lhe convier, e a atividade sexual na adolescência é determinante nesse rito de passagem. No caso de homens, principalmente, sempre foi fator determinante na constituição, afirmação e reconhecimento de sua identidade masculina e adulta.

Esperar, portanto, que a masturbação, no âmbito da Case Masculina, seja algo facilmente controlado, inibido, restrito é improvável de ser pensado. Como diria Foucault (2010), seria uma trapaça anacrônica do Estado com os/as agentes socioeducadores/as. Desse modo, a masturbação, no atendimento socioeducativo, não é proibida, mas controlada pelos/as profissionais e, especialmente, pelos próprios adolescentes. Regras instituídas pelos próprios educandos e apoiadas por diversos profissionais normatizam a prática do “sexo solitário” no interior das unidades socioeducativas, como é o caso de não ser permitida a masturbação nos dias de visita de familiares.

Conforme relatos dos/as profissionais, essa norma foi instituída pelos próprios educandos na perspectiva de promover respeito em relação aos seus familiares, haja vista a possibilidade de alguns educandos objetificarem familiares de outros durante suas práticas eróticas. Assim, nos dias de visita, não é permitida a prática do “sexo solitário” em nenhum local do alojamento, inclusive no banheiro - onde geralmente existe um espaço delimitado reservado para essa prática, chamado de punhetódromo. Não respeitar essa norma pode acarretar “desapoio”4 e punição violenta àquele adolescente que se masturbou, ainda que argumente que não pensou em qualquer familiar de outro colega. Frequentemente, aquele que infringe a regra é segregado, castigado e obrigado a mudar de alojamento antes que sofra maiores violências.

Isso nos remete ao direito à privacidade e à intimidade, expressos na Constituição Federal (artigo 5º, inciso X), assim como ao direito ao prazer, garantido nas normativas da Fundac através do “Programa Laços: Saúde e Sexualidade na Medida Socioeducativa (MSE), em seu artigo 1º5, além do direito à liberdade de pensamentos, de fantasias e de desejos inofensivos quanto à utilização das memórias sensoriais envolvendo outras pessoas, haja vista que desejamos aqueles/as por quem temos alguma admiração, no mínimo, estética ou erótica. Chama a nossa atenção a capacidade de interdição da própria liberdade de pensamento e autonomia sobre seus próprios pares em um ambiente em que já se encontram em privação de liberdade física. Para além da privação de liberdade imposta pelo sistema judicial, eles impõem sobre si mesmos a interdição à liberdade de pensamento e à utilização do próprio corpo sob argumentos patrimonialistas e moralistas.

O que se percebe aqui é que os efeitos patologizantes sobre a prática da masturbação não atingem diretamente esses educandos, mas sim as repercussões moralizantes sobre as práticas sexuais e envolvimento de familiares nelas, especialmente as figuras femininas, como se as mães, tias, irmãs e primas deles estivessem sob a égide da divindade cristã da Virgem Maria, devendo estar isentas de quaisquer erotizações. O argumento visa proteger, geralmente, a integridade simbólica de familiares do sexo feminino, já que a maioria dos adolescentes é de fato visitada por mulheres; certamente, muito pelo reflexo da cultura que confere às mulheres o papel de cuidadoras. Vejamos o que nos conta uma pessoa que trabalha na instituição:

Uma coisa complexa; eu vejo isso como uma coisa complexa, porque, assim, na verdade, você tá traçando dias e horários para você sentir prazer e desejo. Eu vejo como uma coisa de louco, na verdade. Muitos desses educandos que querem o respeito da mãe aqui dentro, quando tão lá fora, não respeitam a mãe, entendeu? Já vi relatos de mães que falavam que o filho chegava em casa com a menina e transava do lado dela! Entendeu? Então, tipo assim, é complexo; muito complexo. É claro que existem casos e casos, mas, quando você ouve, se depara com um relato desse, você pega e abre a mente e os poros e você fala: ‘Que tipo de consideração é essa? Que amor é esse? Que respeito é esse?’. Então, é complicado. (PE).

Além de ser proibido se masturbar em dia de visita, há outros comportamentos vetados, por exemplo, não é permitido olhar para um familiar de outro adolescente quando o familiar passa pelo interior da unidade. Desse modo, quando adolescentes em trânsito no interior das unidades se deparam com algum familiar do sexo feminino de outro adolescente, eles devem parar o que estão fazendo e virar “estátua”. Se estiverem a caminho de algum atendimento, praticando algum esporte, participando de alguma atividade lúdica ou de arte-educação, devem parar e abaixar a cabeça, olhar para o chão, desviar o olhar da visita, submeter-se à regra.

Ainda que esse disciplinamento compulsório sobre os corpos e mentes dos adolescentes seja difundido pelo argumento de respeito à família, perguntamo-nos qual a efetividade disso? Longe de considerar um desrespeito se masturbar na intenção de outro ser humano, qual a possibilidade de essa norma garantir que, em qualquer outro momento, no dia posterior, por exemplo, qualquer um deles se masturbe pensando no familiar do outro? De fato, não há qualquer garantia de controle das fantasias nesse sentido.

Outra questão é: se o socioeducativo se predispõe a forjar uma microssociedade ideal com a estrutura de unidade socioeducativa de internação, no intuito de fomentar possibilidades de ressignificação de atos infracionais e o desenvolvimento de habilidades por meio do convívio comunitário criativo, produtivo, legal e pacífico, como, na condição de agentes socioeducativos, podemos deixar de problematizar a eficácia de tais métodos de disciplinamento e controle dos corpos se, em qualquer sociedade, eles não poderão ser forçados a apagar suas lembranças antigas, recentes ou imediatas produzidas pelos encontros e relações estabelecidas com diversas outras pessoas em comunidade?

Parece-nos alegórico e irresponsável estimularmos ou mesmo apoiarmos tais códigos de conduta no interior das comunidades socioeducativas, pois, no mínimo, contribuiremos para a construção de comportamentos equivocados e insustentáveis na vida em sociedade. Tais tentativas de moralização do sexo promovidas pelos adolescentes devem ser, sim, utilizadas para problematizar o lugar da sexualidade, do desejo, da autonomia, da ética e da liberdade de expressão em relação ao convívio com o outro. Demandam estratégias éticas de relação, como não expor, publicamente, seus desejos e fantasias eróticas pelo/a outro/a se não autorizado/a por ele/a, coibir manifestações de desejos públicos que exponham familiares e adolescentes com o intuito de causar humilhação, ridicularização, hiperssexualização, apropriação indevida, objetificação e exploração sexual do/a outro/a. É preciso valorizar a privacidade, a lembrança, a imaginação, a autonomia e a liberdade de pensamento entre esses sujeitos, sobretudo porque eles já são alvos de inúmeras interdições sociais, culturais, econômicas, legais e jurídicas.

Contudo, uma importante flexibilização da masturbação em dia de visita foi relatada pelo profissional PA. Segundo ele, é possível se masturbar em dia de visita familiar desde que o adolescente não tenha recebido visita nem tenha tido contato com familiares de outros educandos naquele dia. Desse modo, desde que comprovados esses critérios, admite-se a prática do “sexo solitário” sem punição no dia de visita familiar. Ainda que tal aceitação não problematize as questões mais relevantes de autonomia e liberdade de pensamento e desejo, essa negociação, a nosso ver, abre brecha para a problematização da prática e busca de novos entendimentos que valorizem a subjetividade do adolescente e o compromisso ético com outros sujeitos em sociedade.

Faz-se importante destacar como o conflito - nesse caso, da masturbação - é um terreno fértil para problematizações de questões elementares para a constituição de personalidades críticas, livres e solidárias. É importante não desperdiçar tal pauta, ainda que espinhosa, complexa ou delicada para contribuir com o avanço da compreensão do indivíduo sobre si mesmo, sobre a sociedade que os constitui culturalmente e sobre as possibilidades de emergência de convivência não violenta, democrática e ética com outros, seja dentro das unidades socioeducativas de internação, seja quando egressos delas em convívio social em liberdade.

Outra questão importante quanto às estratégias de regulação da masturbação na privação de liberdade é a criação de um espaço específico, já citado, chamado punhetódromo, destinado ao ato da masturbação no interior dos banheiros situados dentro dos alojamentos. Os banheiros foram escolhidos porque os quartos, em geral, possuem grades em sua entrada para visão panorâmica de seu interior e, consequentemente, não garantem a privacidade para os adolescentes. “Qualquer privacidade demais pode custar uma vida”, diz PB.

Os punhetódromos foram criados em virtude dos limites para praticar a masturbação nos espaços de convivência coletiva, já que neles circulam, frequentemente, profissionais e, ocasionalmente, adentram colegas mulheres, como assistentes sociais, psicólogas, educadoras de medida, pedagogas, dentre outras, que poderiam ser surpreendidas pelo “ato obsceno”, que é considerado falta grave nas Comunidades de Atendimento Socioeducativo, conforme previsto em seu Regimento Interno: “Art. 63 - Considera-se falta disciplinar de natureza grave: XIV - praticar atos obscenos, violência sexual e coação para prática sexual” (BAHIA, 2017).

Desse modo, a masturbação pública se configura como uma falta disciplinar grave praticada pelos adolescentes, inclusive com possibilidade de agravamento do ato infracional original pelo acúmulo de ato análogo ao ultraje ao pudor, por prática sexual explícita no interior de estabelecimento público, e isso pode afetar a sua evolução no cumprimento da Medida Socioeducativa de Internação (MSEI) e comprometer a sua liberação em curto tempo ou progressão dessa medida para uma de semiliberdade ou liberdade assistida, se for o caso, além de, no mínimo, ser imposta uma sanção pedagógica na unidade socioeducativa com comprometimento de participação em atividades lúdicas ou decorrentes de recompensas por merecimento.

Uma estratégia adotada por eles para burlar a circunscrição do ato sexual ao banheiro, ainda que não seja muito frequente, é a prática sexual com a colaboração de “olheiros”, que se posicionam na entrada do quarto e avisam quando algum/ma profissional está se aproximando. Entretanto, além disso, entre os próprios adolescentes, há aqueles que não querem ser expostos às práticas masturbatórias de outros e, eventualmente, esses atos podem acarretar conflitos entre os educandos. Então, essa estratégia que eles denominam de punhetódromo atende aos interesses individuais e coletivos dos adolescentes, assim como ao controle da segurança coletiva dentro dos alojamentos. Promove, em certa medida, a liberdade de expressão sexual e a convivência pacífica no interior da unidade socioeducativa.

Uma característica frequente desse equipamento chamado punhetódromo é o revestimento das paredes que delimitam o seu espaço: geralmente, um box onde se encontra um vaso sanitário estilo turco, com colagens de materiais pornográficos. Todavia, a entrada desses materiais é proibida na Unidade Socioeducativa, conforme determina a proibição aos servidores de “[...] portar, fornecer ou facilitar a entrada de material pornográfico”, expressa no artigo 114, inciso VIII, do Regimento Interno. Isso se constitui em falta grave sujeita à sanção, expressa no mesmo documento: “Art. 121 - São Faltas Graves: I - portar, fornecer ou facilitar a entrada de armas de qualquer espécie, telefones celulares, rádios transmissores não institucionais, material pornográfico e outros materiais proibidos pela Gerência da Case” (BAHIA, 2017).

O fato é que a normativa, nesse caso, como em muitos outros, não corresponde à realidade da unidade socioeducativa. Mais uma vez, a impotência no que se pretende controlar aparece, rasura a norma e desestabiliza as tentativas de repressão do que é considerado imoral, supérfluo e perigoso. Imoral pela condição ocupada pela pornografia em nossa cultura descendente de crenças judaico-cristãs, na qual o sexo é destinado à monogamia, à reprodução e à heterossexualidade. Nessa perspectiva, o sexo deve ser limpo, puro, inocente, não promíscuo e monogâmico, o que as revistas pornográficas desconstroem em geral pelas múltiplas possibilidades visualmente apresentadas de associações coletivas para obtenção de prazer.

Supérfluo, sobretudo, pelo argumento da possível “regalia” que se estaria proporcionando àqueles que deveriam ser punidos em tamanha extensão que a privação de liberdade não seria suficiente, mas deveria afetar e interditar seus próprios pensamentos, fantasias, fetiches e gozos, como já vimos em relação ao tabu com o dia de visita familiar. E perigoso por ser um bem valioso na privação de liberdade, cobiçado por muitos e que, consequentemente, poderia se tornar “moeda de troca” entre educandos, que, na sua economia cotidiana, poderiam promover “jogos de azar” para barganhar materiais pornográficos.

O desejo, contudo, sempre encontra caminhos para furar as normas, especialmente quando existimos sob os princípios do imperativo de gozo. Eventualmente, aparece uma revista nova no alojamento, nem sempre levada pela família, mas por pessoas que reconhecem o poder do erotismo sobre o comportamento desses sujeitos e que é disponibilizada “controladamente” e “solidariamente” para proporcionar algum relaxamento, “desaperto de mente” e prazer aos adolescentes. Isso mostra que não é a partir da proibição que se evitará o mal-uso do material pornográfico, visto que a utilização de forma negociada pode se configurar como importante instrumento pedagógico de socialização de bens com outros, generosidade, convivência pacífica, desenvolvimento de autonomia e garantia de acesso ao direito ao prazer, à intimidade, à privacidade e à liberdade do indivíduo em medida de internação.

A força do universo, da natureza, conseguiu com que uma revista chegasse na mão do menino e essa revista fica lá guardada e, quando eles querem, cada um vai lá, pega, se alivia e devolve, entendeu, e guarda. Então, é complicado, é aquele tipo: ‘Oh, não pode, mas eu não tô vendo nada. Para todos os efeitos, se acontecer alguma coisa: ‘Ah, não pode!’. Se tá aqui, você vai cumprir sanção, tá descumprindo as regras. (PE).

Pela inevitabilidade da presença desses materiais pornográficos no interior das unidades socioeducativas, muitas vezes, para a garantia do uso coletivo e não configuração de moeda de troca desses materiais, adotam-se estratégias de socialização que vão desde a liberação regulada pelo profissional individualmente até o revestimento das paredes do punhetódromo para usufruto coletivo de todos.

4 Para concluir: a Pedagogia

Pelo exposto, embora sejam inúmeros os desafios quanto ao exercício democrático da masturbação no contexto de privação de liberdade, verifica-se como as manifestações das práticas de sexo quase nada “solitárias” no âmbito das unidades socioeducativas provocam, de algum modo, o furo, a rasura da fronteira binária entre o que é permitido ou proibido, do bem e do mal, especialmente quando levam tanto adolescentes quanto profissionais a se tornarem provisoriamente aliados e transgressores das normas institucionais, com o objetivo de promover condições, equipamentos e instrumentos que auxiliem o exercício da cidadania sexual, que é fundamental para o desenvolvimento subjetivo, coletivo e integral dos educandos, na perspectiva da emergência de diálogos, negociações e pactuações que possam contribuir para a garantia de direitos e acesso à autonomia, ao prazer e à intimidade.

Apesar de estarmos inseridos em uma sociedade de consumo hedonista, na qual o imperativo do gozo se manifesta por diversas persuasões sociais e bioquímicas entre as diferentes gerações e sexos, nem mesmo o prazer via masturbação está livre das vigilâncias, controles, regulações e punições. Por meio do tema “sexo solitário”, problematizamos como a permissão para a prática da masturbação, no ambiente socioeducativo masculino, demanda a articulação de diversos dispositivos de controle e regulação de autoria dos próprios educandos, ao mesmo tempo que, geralmente, é legitimada também pelos/as profissionais.

Não podemos esquecer, porém, que esse e os outros problemas de gênero e sexualidade que identificamos em nossa pesquisa ocorrem em um sistema socioeducativo e que as pessoas a que nos propomos reeducar, no caso específico deste texto, são adolescentes e jovens autores/as de atos infracionais, em conflito com a lei, em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade, que já borraram as fronteiras entre o legal e ilegal, que constituíram as suas identidades a partir de atos e comportamentos desviantes, que canalizaram ou foram levados a canalizar, por contextos de múltiplas vulnerabilidades, as suas energias mais vitais para a sobrevivência em um mundo mercantilista, em que o poder de consumo é pré-requisito básico para sobrevivência. São, em sua maioria, pessoas negras, periféricas e, muitas vezes, abandonadas e violentadas por aqueles/as que lhes deveriam garantir abrigo e proteção. Adolescentes e jovens que romperam, de certo modo, com diversos padrões sociais, inclusive, algumas vezes, com os seus próprios vínculos familiares sanguíneos.

Para essas pessoas, portanto, devemos ter em mente uma perspectiva de atuação pedagógica para a ressignificação de vidas e distanciamento dos atos infracionais a partir da utilização dessa potência transgressora peculiar da juventude, por vezes agressiva, apaixonada, contestadora, criativa, inventiva, no sentido de refletir dialogicamente sobre o seu lugar social de raça, classe, sexo, gênero, sexualidade, dentre outros marcadores sociais das diferenças que os/as caracterizam paradoxalmente como cidadãos/ãs ou inumanos/as.

Dessa forma, poderemos efetivamente estimular esses/as jovens e adolescentes a buscar outros meios de existência mais conscientes, que os/as levem ao seu reposicionamento cultural na perspectiva de romper com históricos compulsórios de envolvimento em contravenções, sobretudo através do estímulo à autonomia, ao protagonismo compartilhado, ao diálogo, à liberdade e às transgressões legítimas.

E, pedagogicamente, como isso pode ser produzido? bell hooks6 (1999) nos ensina que eros e o erotismo não podem ser esquecidos em qualquer processo pedagógico, pelo contrário, por isso nos aponta para uma pedagogia queer (RIOS; CARDOSO; DIAS; 2018); defende a proposta de uma educação que ensina a transgredir (hooks, 2017), dialoga com o pensamento filosófico de Paulo Freire (2019) e nos explica que a educação para a liberdade pressupõe fazer-se presente de forma integral, com corpo, mente e espírito, numa perspectiva para além do binarismo material/imaterial. Trata-se de um processo de ensino e aprendizagem no qual educandos/as e profissionais devem ser corresponsáveis nas relações que estabelecem, com disponibilidade, abertura, compromisso, sensibilidade, reciprocidade, alteridade e ética.

Antonio Carlos Gomes da Costa (1997), ao propor a sua Pedagogia da Presença, também prioriza a relação de cumplicidade afetiva e dialógica entre educador e educando, valorizando, sobretudo, no processo de aprendizagem, as experiências daqueles/as adolescentes e jovens “em dificuldade”, dissidentes, transgressores ou infratores que, investidos/as de demandas eventualmente emergenciais e vitais, reivindicam a participação social e direitos humanos por caminhos nem sempre pacíficos, harmoniosos ou legais: “A verdade da relação educador-educando, do ponto de vista da Pedagogia da Presença, baseia-se na reciprocidade, entendida como a interação na qual duas presenças se revelam mutuamente” (COSTA, 1997, p. 53).

Desse modo, como não considerar as múltiplas identidades que atravessam e constituem esses sujeitos? Como não considerar sua cor, sua classe, suas necessidades econômicas, afetivas e sexuais? Como negligenciar a masturbação e a emergência das demais práticas sexuais no âmbito da privação de liberdade, os vínculos estabelecidos que ultrapassam o lugar da violência, mas se constituem de fato em oportunidades para ressignificação de interesses, de desejos e, consequentemente, d conexões com um outro nível de prazer para além da ordem consumista e heteronormativa? Como prepará-los/as para o convívio social legítimo e legal sem considerar as demandas e reivindicações de suas subjetividades? No tocante ao tema desenvolvido neste texto, por que não utilizar a regulação, a vigilância, a normatização e também a subversão da masturbação como um instrumento pedagógico capaz de historicizar e problematizar as normas que incidem sobre todas as pessoas?

É nesse contexto que é fundamental considerar as questões de sexo, gênero e sexualidade, além de outros marcadores interseccionais que impactam no desenvolvimento das suas identidades, no projeto de reeducação de jovens e adolescentes em situação de privação de liberdade, para fomentar o surgimento de exercícios de cidadanias mais plenas e promoção e garantia de direitos humanos e sexuais imprescindíveis para sustentar as suas trajetórias com autoestima, autonomia e liberdade.

Material suplementar
5 Referências
BAHIA. Instrução Normativa Fundac nº 01/2018. Programa Laços: saúde e sexualidade na MSE. Salvador: 2018.
BAHIA. Portaria Fundac nº 61/2017. Regimento Interno das Comunidades de Atendimento Socioeducativo - CASE. Salvador: 2017.
BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 5 out. 1988.
CORREIA, S. C. Problemas de gênero e sexualidade vivenciados por adolescentes e jovens em situação de privação de liberdade. 2020. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020.
COSTA, A. C. G. Pedagogia da presença: da solidão ao encontro. Belo Horizonte: Modus Facendi, 1997.
FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 68. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2019.
GARBELOTTO, F. C.; COLLING, L. A intersexualidade e os direitos humanos. In: DIAS, M. B. (coord.). Intersexo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 209-224.
HOOKS, b. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2017.
HOOKS, b. Eros, erotismo e o processo pedagógico. In: LOURO, G. L. (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 113-123.
LAQUEUR, T. W. Sexo solitario: una historia cultural de la masturbación. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007.
PORTAL Geledés. A pedagogia negra e feminista de bell hooks. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/a-pedagogia-negra-e-feminista-de-bell-hooks/. Acesso em: 20 mar. 2021.
RIOS, P. P.; CARDOSO, H.; DIAS, A. Concepções de gênero e sexualidade d@s docentes do curso de licenciatura em pedagogia: por um currículo Queer. Educação & Formação, Fortaleza, v. 3, n. 2, p. 98-117, 2018.
VERGUEIRO, V. Sou travestis: estudando a cisgeneridade como possibilidade decolonial. Brasília, DF: Padê, 2018.
Notas
Notas



Notas
1 Para este artigo, utilizamos depoimentos de apenas três profissionais, identificados com as siglas PA, PE e PB. As entrevistas foram realizadas durante o ano de 2019.
2 No decorrer do texto, veremos que, na verdade, a masturbação está longe de ser uma prática sexual totalmente solitária, dentro ou fora do sistema socioeducativo. Por isso, manteremos sempre as aspas nessa expressão.
3 Todas as traduções foram realizadas pelos autores deste texto.
4 Desapoiar ou apoiar são decisões, frequentemente, tomadas entre os/as educandos/as sobre questões que afetam coletivamente a eles/as. Isso acontece, geralmente, a partir da realização de um “para”, que consiste na parada imediata para a realização de um debate e tomada de decisão sobre uma questão, uma espécie de assembleia não previamente agendada nem autorizada pela gestão.
5 Instrução Normativa nº 01/2018 - Programa Laços: Saúde e Sexualidade na MSE: “Artigo 1º: [...] voltada à implantação e implementação de ações de garantia dos direitos sexuais e reprodutivos dos(as) adolescentes e jovens adultos(as) internos(as), visitantes, familiares e profissionais dos programas de atendimento e da rede de saúde, com foco na sua educação continuada e permanente e de práticas para favorecimento do desenvolvimento humano nos momentos de intimidade, na perspectiva do prazer e do afeto, considerando, também, o exercício seguro e saudável da sexualidade” (BAHIA, 2018, s/p).
6 Para a escritora, educadora, ativista negra e feminista, a grafia do seu nome em letras minúsculas é uma decisão política de valorizar mais as “ideias e o conhecimento” do que as pessoas, seus nomes e sobrenomes em si (PORTAL GELEDÉS, 2019).
Autor notes
* Sandro Costa Correia, Universidade Federal da Bahia, Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade

https://orcid.org/0000-0001-5144-7329

Especialista em Políticas Públicas e Socioeducação, mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e integrante do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS) da Universidade Federal da Bahia.

Contribuição de autoria: Administração do projeto, conceituação, escrita - revisão e edição, supervisão, validação e visualização.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5879972507746088

E-mail: sandroccba@hotmail.com

** Leandro Colling, Universidade Federal da Bahia, Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade

https://orcid.org/0000-0002-0519-2991

Bolsista de produtividade em pesquisa 2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. Professor permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PPGCHS) da Universidade Federal do Oeste da Bahia. É integrante do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS).

Contribuição de autoria: Análise formal, escrita - primeira redação, investigação e metodologia.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9841032316581104

E-mail: leandro.colling@gmail.com

Editora responsável: Lia Machado Fiuza Fialho
Pareceristas ad hoc: Natália Cavalcanti e Soraya Adorno



Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc