Wed, 29 Jan 2025 in Educação & Formação
A formação docente em disputa política: as persistentes apostas curriculares neopragmatistas e neoconservadoras
Resumo
O currículo da formação docente no Brasil segue como território de disputas políticas e com desenhos enunciativos de um currículo empresarial. Neste estudo, de caráter exploratório e documental, buscou-se analisar algumas investidas políticas que se dão em torno da formação docente no Brasil. Refletiu-se sobre o percurso de produção do texto político mediado pela Resolução nº 2, de 20 de dezembro de 2019, que definia as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores/as para a Educação Básica, e a nova Resolução nº 4, de 29 de maio de 2024. Destacaram-se os atravessamentos neopragmatistas, que vão perfilar modelos intransigentes de docência. O estudo problematiza o processo de disputa política a partir do que ensejam em torno de princípios básicos e fundamentais para a formação de professores/as.
Main Text
1 Introdução
A formação de professores/as no Brasil é marcada, historicamente, por remendos e moldes coloniais violentos para designar um tipo humano a ser formado. Os saberes e a compreensão da docência como profissão ainda sofrem para se afirmar politicamente. O currículo como espaço de poder e produção cultural é uma instância privilegiada enquanto espaço de produção de conhecimento mediado por um modelo societal. Contudo, compreensões diferentes sobre o tema, dependendo da perspectiva política e ideológica de cada governo que ascende ao poder, tem comprometido gerações ao excluir, omitir, invisibilizar e mascarar fatos, acontecimentos e grupos sociais. Negam o direito das populações, principalmente as que acessam a escola pública, a uma educação com qualidade social e socialmente referenciada.
Nesse ínterim, a docência e o movimento curricular da formação seguem em disputas ao longo da história, a partir de receituários neopragmatistas que se apresentam como inovação. Os descritores sobre o que ensinar, nos últimos anos, ocorrem com fins políticos e ideológicos no Brasil. A lógica produtiva cumulativa, as reformas iniciadas nos anos de 1990 na forma de organização do Estado e a sua captura por interesses privatistas, além da globalização que permitiu um aumento do mercado em nível mundial, tudo isso possibilitou parcerias entre os diversos setores da sociedade.
Para Pereira (1997), o Estado sofre dupla pressão: precisa ser mais forte e mais barato. Assim, as empresas multinacionais, que agora concorrem internacionalmente, começam a exigir que esse Estado se torne mais eficiente e eficaz no gerenciamento dos gastos públicos. Tal mudança na forma de organização, de Estado máximo para mínimo, com controle da economia pelo mercado, aproximou as grandes corporações e propiciou a inserção de novos grupos, para além dos políticos e ideológicos, na educação.
As políticas educacionais, de modo especial as curriculares e avaliativas, nas últimas décadas, têm dominado a pauta das discussões de políticos, economistas, empresários, comerciantes, banqueiros, militares, religiosos, profissionais das mais diversas áreas, além de representantes de organizações não governamentais, que defendem uma perspectiva salvífica e mercadológica da educação, atribuindo à comunidade escolar também a responsabilidade pelo desenvolvimento econômico do país e, consequentemente, o seu fracasso.
Ressaltamos que as políticas educacionais não são constituídas de forma isolada e não normatizam apenas níveis, etapas e modalidades, visto que se articulam e direcionam a formação inicial e continuada dos/as professores/as. Os recursos destinados para a sua “implementação” interferem diretamente no financiamento da educação como um todo. Seus resultados estão vinculados às métricas estabelecidas pela avaliação de larga escala e serão conduzidos por um modelo de gestão previamente estabelecido. Ao falarmos, portanto, sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por exemplo, estamos também refletindo sobre as demais políticas destinadas a formar, gerenciar, financiar e avaliar o processo formativo dos sujeitos que irão atuar em nossa sociedade.
Não poderíamos conduzir o tema do escrito sem destacar as desigualdades sociais, econômicas, culturais e educacionais dos sujeitos que as vivenciam. Refletir sobre educação e formação de professores/as é também discutir sobre questões de gênero, raça, etnia, colonialidade, patriarcado, xenofobia, feminicídio, violência e exclusão. No entanto, não temos como abordar tais questões de forma breve, para não incorrermos no erro de tratar questões tão importantes superficialmente. Por isso, elegemos discutir neste texto sobre dois pontos: a educação com qualidade social nos diferentes contextos e territórios e as disputas políticas para a formação de professores/as no Brasil nos últimos 10 anos, sob a égide do neopragmatismo. Concluímos indicando quais novos direcionamentos propomos que sejam defendidos como políticas de Estado para a formação docente.
2 A disputa pela imposição de um conceito de “qualidade” na educação transversalizando a formação docente
Alguns termos têm sido usados nas últimas décadas com o intuito de demonstrar preocupação com a relevância da educação no Brasil: qualidade, eficiência, eficácia, competências, habilidades, recomposição, empreendedorismo, projeto de vida, meritocracia, perfomatividade e accountability.
O debate sobre “Educação de qualidade” e escola pública tem dominado a mídia, os discursos calorosos de congressistas, empresários e consultores internacionais e mobilizadores de políticas. Sempre que dados das avaliações de larga escala são divulgados e se constatam que “medidas” elaboradas em gabinetes, pelos técnicos implementadores de políticas, não surtiram o efeito esperado e não contribuíram para a diminuição das taxas - por exemplo, de evasão, de abandono escolar, de analfabetismo, de escolarização, de anos de estudo, da distorção idade/ano/série e de faltas -, consultores/empresários vinculados às organizações sociais/empresas são entrevistados com o intuito de apontar o que não deu certo nos programas aprovados e por que a educação pública não atinge os índices esperados de países desenvolvidos ou em desenvolvimento.
Os argumentos desses técnicos/especialistas apresentados sempre apontam a questão da ausência de qualidade da educação pública. Entretanto, a qual conceito de “qualidade” esses especialistas estão se referindo? Não é preciso adentrarmos profundamente na questão para entendermos que o termo utilizado é polissêmico e se vincula a perspectivas epistemológicas distintas e contraditórias. No entanto, o que temos observado é que a insatisfação por essa forma de avaliação vinculada a uma concepção empresarial que tenta padronizar, homogeneizar e moldar crianças, jovens e adultos, por meio da definição do que cada um deve ou não aprender para atender aos ditames do mercado, tem aumentado consideravelmente nos últimos anos. A qualidade aferida a partir de parâmetros de utilidade, praticidade e comparabilidade, utilizando medidas e níveis mensuráveis, padrões, rankings, testes comparativos, hierarquização e estandardização, não converge para a compreensão de escola como uma das instituições responsáveis pela humanização dos sujeitos, indicando uma visão de que a educação e a escola são mercadorias.
Não precisamos nos alongar na argumentação de que tal perspectiva tem como principal direcionamento o controle do processo, dos conteúdos e dos currículos, ou seja, da organização do trabalho pedagógico. A principal consequência, ou objetivo, que percebemos é a formação de sujeitos desvinculados dos seus contextos, territórios e necessidades, subservientes à lógica empresarial, que se creem empreendedores de si mesmos.
Outra questão observada nos últimos anos por pesquisadores em seus grupos de pesquisas, e mesmo através dos indicadores sociais divulgados anualmente, é que tal concepção de qualidade vinculada aos ditames mercadológicos também converge para o distanciamento dos estudantes dos conteúdos responsáveis pela compreensão das pessoas enquanto sujeitos humanos, históricos, que devem ser respeitados em suas formas de ser e estar no mundo. A violência contra mulheres, crianças, negros, comunidade LGBTQIAPNB+, povos originários e pessoas com deficiências em nossas escolas é também o reflexo desse processo de desumanização dos sujeitos, empreendido por políticas que consideram que só algumas vidas importam.
Por isso, defendemos políticas que considerem a “qualidade socialmente referenciada”, principalmente para os estudantes das escolas públicas, visto que tal perspectiva caminha numa direção que destoa da perspectiva mercadológica. No Congresso Nacional de Educação (Coned) de 1997, a noção de qualidade social já apontava estar baseada nos valores fundamentais, tais como:
[...] solidariedade, justiça, honestidade, autonomia, liberdade e cidadania. A educação com qualidade social tem como consequência a inclusão social, através da qual todos os brasileiros se tornem aptos ao questionamento, à problematização, à tomada de decisões, buscando as ações coletivas possíveis e necessárias ao encaminhamento dos problemas de cada um e da comunidade onde vivem e trabalham (Coned, 1997, p. 10).
Cabe, portanto, mesmo sabendo tratar-se de um campo de disputa, a defesa da qualidade socialmente referenciada nas políticas educacionais porque a compreendemos como promotora da criação de um novo tipo de humanidade, com democracia econômica, política, social e cultural. É a partir da nossa compreensão de qualidade social referenciada que vamos discutir a formação docente e as políticas que tentaram/tentam impor uma perspectiva de educação e, consequentemente, formação de professores/as no Brasil.
3 Neopragmatismo na formação docente: o que está de/anunciado?
Neste estudo, recuperamos a noção filosófica do pragmatismo, que tem se tornado investimento (neo)liberal e que, de forma camaleônica, tem atravessado os modos de pensar a educação de qualidade com foco na formação docente. O pragmatismo é uma corrente filosófica disseminada no final do século XIX que ressurgiu na segunda metade do século XX, requentando fundamentos para se insurgir como inovação, passando a ser tratada como neopragmatismo. Nesse sentido, algumas recomposições curriculares de formação também irão se amparar na lógica praticista para pensar na formação aligeirada e instrumental. As bases curriculares vão assimilar o neopragmatismo como receituário de formação humana.
A versão preliminar da Base Nacional Comum para a formação de professores/as da Educação Básica (BNC formação inicial) teve sua primeira versão divulgada em dezembro de 2018 no governo do presidente Temer. Dentre as críticas apresentadas pelas associações e entidades científicas à proposição, uma das principais foi a retomada dos princípios e medidas que estavam estabelecidos na Resolução nº 1, de 18 de fevereiro de 2002, do Conselho Pleno (CP) do Conselho Nacional de Educação (CNE), que estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores/as da Educação Básica. O rumo pragmatista aparece como herança política das diretrizes de formação do governo de Fernando Henrique Cardoso. A Resolução CP/CNE nº 1/2002, em seu artigo 3º, estabelecia que “[...] a formação de professores/as para as diferentes etapas e modalidades da educação básica deveria ter a competência como concepção nuclear na orientação do curso”.
É inegável que a formação de professores/as está interligada diretamente ao desenvolvimento da educação e à construção de uma sociedade mais justa e igualitária, sobretudo quando levamos em consideração os cursos de licenciatura no Brasil. No entanto, nos últimos anos, sobretudo nos governos Temer (após o golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, 2016-2018) e Bolsonaro (2019-2022), surgiram desafios significativos relacionados à qualidade e à orientação dos cursos em todo o território brasileiro, principalmente nos institutos, nas universidade e nas faculdades que se destinam a formar docentes para a Educação Básica.
Durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, as políticas públicas de educação no Brasil foram marcadas por reformas questionáveis, especialmente referentes à formação de professores/as para a Educação Básica. Observamos, portanto, um enfraquecimento dos investimentos em educação pública e um incentivo ao avanço de políticas privatizantes e mercadológicas na área educacional, obedecendo a uma agenda neoliberal. Isso tem influenciado a orientação das políticas de formação docente, priorizando uma visão utilitarista e tecnicista da educação em detrimento de uma abordagem mais crítica e emancipatória.
O que pode uma política pública? Que agenciamentos são orquestrados para a formação docente? Como é possível ainda termos políticas educacionais pautadas em visões pragmáticas? O que querem para as licenciaturas? Como as políticas recentes atacam diretamente a formação docente? Como é possível uma política para a formação docente que esteja compreendida nos princípios da autonomia, da criticidade, da afetabilidade, do respeito e da ciência? Que apostas são feitas no governo atual para a formação docente? É possível uma outra formação?
Tais perguntas são necessárias, uma vez que, mesmo tendo sido resultado dos governos anteriores - com práticas de direita e extrema direita e, consequentemente, ultraliberais - ainda hoje, no governo atual do presidente Lula (2023-2026), persistem as políticas às quais tanto tecemos críticas e das quais exigimos a imediata revogação, quais sejam: BNCC, Reforma do Novo Ensino Médio e, especificamente, a BNC-Formação (Brasil, 2017, 2018, 2019a, 2019b).
Entendemos, anunciamos e, muitas vezes, denunciamos, em outras oportunidades (Albino; Da Silva, 2019; Albino; Rodrigues, 2023; Rodrigues; Albino; Honorato, 2021; Silva; Dutra-Pereira; Tinôco, 2023), que essas políticas estão interligadas e retroalimentadas, porém, neste artigo, focaremos na BNC-Formação, por ser o elo entre as três pessoas que têm se debruçado a pesquisar as anunciações do neopragmatismo na política de formação docente no Brasil.
A BNC-Formação é respaldada pela Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores/as para a Educação Básica e institui a BNC-Formação. Ela é um marco preocupante nesse contexto que gerou e gera até hoje diferentes debates e embates.
Temos percebido muitos esforços e práticas de manutenção dessa política. Não obstante, diversas entidades denunciaram e denunciam as implicações dessa política no contexto da educação pública no Brasil. Essas táticas e jogos de sustentação de uma possibilidade única de formação e a valorização do neopragmatismo nos fazem reafirmar que o neoliberalismo impõe uma lógica de mercantilização da educação que compromete sua função social e democrática.
Sobre a aprovação da resolução para a formação inicial e continuada de professores/as, diversas entidades manifestaram descontentamento e preocupação sobre a geração de uma política pública apática e pragmática que ataca diretamente as pesquisas realizadas na área da Educação em nosso país.
No processo de luta, a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope) também sinaliza e anuncia a problemática de uma resolução para a formação docente que privilegia somente a prática sem que possa refletir sobre ela. Além disso, enquanto entidade que luta incansavelmente pela formação de qualidade, exige a revogação da Resolução nº 2/2019 e solicita a imediata implementação da Resolução nº 2/2015.
Desse modo, temos denunciado que a Resolução nº 2/2019 restringe a formação docente a uma abordagem utilitarista e instrumental, que era a centralidade dos cursos de formação nos 1960, perpassando pelo período da Ditadura Militar, o que compromete a qualidade e a profundidade do seu ensino nas escolas. Esse abalroamento vai ao encontro dos princípios do neopragmatismo na formação docente.
Este modus operandi preconizado para a formação docente enfatizava a eficiência e a aplicação imediata de técnicas de ensino disseminadas por corporações privatistas, desconsiderando a importância da formação teórica e da reflexão sobre os fundamentos da educação. Essa investida pragmática se refletia nas diretrizes curriculares para a formação de professores/as, que muitas vezes priorizavam a transmissão de conteúdos específicos e a preparação para exames de avaliação em larga escala em detrimento do desenvolvimento de uma visão ampla e crítica sobre a educação.
Criticamos o neopragmatismo nas licenciaturas por desconsiderar os contextos sociais, culturais e políticos em que as/os professores/as atuam. Ao enfatizar apenas a aplicação de técnicas e metodologias de ensino, respaldadas pelos modelos de competências e habilidades, como está na BNC-Formação, sem uma reflexão crítica sobre as desigualdades presentes no sistema educacional e na sociedade como um todo, essa formação contribui para a reprodução de práticas pedagógicas negacionistas, autoritárias, aniquiladoras e excludentes.
A influência do neopragmatismo nas licenciaturas também pode ser observada na forma como os estágios e práticas supervisionadas são conduzidos. Muitas vezes, essas atividades são reduzidas a meras observações de aulas em sala, sem um espaço adequado para a reflexão sobre as experiências vivenciadas e a construção de conhecimento pedagógico. Como resultado, os/as futuros/as professores/as não estarão preparados/as para lidar com a complexidade e os desafios do ambiente escolar.
Assim, ao privilegiar apenas a aplicação de métodos padronizados, essa tendência, presente constantemente na Resolução nº 2/2019, limita a autonomia e a criatividade dos/as professores/as, impedindo que desenvolvam práticas pedagógicas contextualizadas. Essa perspectiva reducionista tende a desconsiderar a complexidade do processo de ensino e aprendizagem, bem como as dimensões éticas e políticas da educação. Além disso, o neopragmatismo tende a desvalorizar o papel dos/as professores/as como intelectuais críticos/as e agentes de transformação social. Como resultado, os/as professores/as poderiam se tornar meros/as executores/as de políticas educacionais externas, sem autonomia para questionar e transformar a realidade em que atuam.
Isso tem, de certo modo, refletido na (re)estruturação dos currículos dos cursos de licenciatura, que reforçam, consubstanciados pela imposição da resolução, a valorização de resultados que são distantes da realidade escolar em que atuam. Ao priorizar a transposição de conteúdos e a mensuração de competências, esqueceram, mas não por motivos leigos, da formação cidadã e emancipatória e da valorização e ampliação das diferenças, sobretudo dos corpos marginalizados. Corremos o risco de desvalorizar o papel do/a professor/a como agente transformador/a e construtor/a do conhecimento, limitando sua atuação ao mero repasse de informações aos/às estudantes na Educação Básica.
Essa visão reducionista da formação docente pode ser observada em muitos currículos da licenciatura, que têm se submetido a um chamado para adequação à Resolução nº 2/2019, quando, muitas vezes, sequer foram implementadas as determinações da Resolução nº 2/2015. Constatamos, desse modo, um contraste em relação a uma reflexão do porquê se ensina, como se ensina, para quem se ensina e do que se ensina. Assim, a Resolução nº 2/2019 não prevê as discussões sobre as questões sociais, culturais e políticas que permeiam a educação, a escola e a sociedade atual, de modo que se compreenda a necessária atuação multicultural da docência.
Diante desse cenário, defendemos que é fundamental que as políticas públicas de educação no Brasil incentivem uma perspectiva mais reflexiva e crítica na formação de professores/as nas licenciaturas. Isso inclui a retomada da implementação da Resolução nº 2/2015, em respeito à valorização da teoria e da prática enquanto alicerces da pesquisa educacional, da promoção de espaços de reflexão e de debate sobre as práticas pedagógicas e do fortalecimento dos programas de formação continuada para os profissionais da educação. Somente assim acreditamos que será possível garantir uma educação de qualidade e inclusiva para todos os estudantes brasileiros.
4 Contextos neopragmáticos para formação docente
O neopragmatismo, como fundamento político-filosófico para pensar a formação, consiste numa representação ideológica importante no processo de reestruturação do capital quando advoga de forma aditiva teoria e prática como se fossem somatórios simples para pensar a formação humana. Nessa direção, o neopragmatismo cumpre os anseios das agências econômicas mundiais na consolidação de um currículo que abrace o capital. Nesse sentido, ainda é importante assinalar os estudos de Jimenez e Soares (2007, p. 123):
A educação cidadã do novo trabalhador ou ‘educação para o desemprego’ é coberta com o manto da retórica neopragmática que afirma o caráter contingente do conhecimento e de toda a realidade. Ademais, fragmentando o saber, impondo uma educação instrumental e técnica, apoiada no desenvolvimento de competências e habilidades (básicas), que, à moda das ‘verdades’ do filósofo norte-americano Richard Rorty, são sempre mutáveis, contingentes. ‘O aprender a aprender’ se insere nessa lógica integradora dos educandos na exata necessidade dos interesses reprodutivos do capital.
A construção da Resolução CNE/CP nº 4, de 29 de maio de 2024, ainda mediada pelo aprender a aprender, não pode ser entendida de forma isolada, pois está inserida em um longo processo político e econômico que atravessou diferentes governos no Brasil, refletindo tensões entre os interesses públicos e privados na educação brasileira. A formação docente não ficou isenta de ser capturada pelas garras neoliberais que usurpam as políticas curriculares na esfera nacional, como apontamos na seção anterior. Por isso, a trajetória dessa resolução - aprovada no governo Lula (2023-2026) - remonta a contextos históricos marcados por crises políticas, intervenções empresariais na educação pública, autoritarismo e fortalecimento de políticas neoliberais que, ao longo dos anos, transformaram a formação de professores/as em um campo de disputa ideológica.
Convém, portanto, fazer uma retrospectiva da Resolução CNE/CP nº 2/2015 aprovada no segundo governo da presidenta Dilma Rousseff (2015-2016). Essa resolução foi uma tentativa de avançar nas políticas de formação docente dentro de uma perspectiva mais inclusiva e democrática, sintonizada com as diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado em 2014, que tinha metas ambiciosas de melhoria na qualidade da educação e na valorização dos profissionais do magistério (Brasil, 2014). O governo Dilma Rousseff, nesse momento, ainda buscava uma política educacional que fortalecesse o papel do Estado como garantidor de uma educação pública de qualidade, inclusiva, que fosse capaz de reduzir as desigualdades educacionais.
Entretanto, com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, uma ruptura política ocorreu, trazendo implicações diretas para a continuidade das políticas educacionais. O golpe representou o início de um ciclo de retrocessos que foram aprofundados durante os governos subsequentes, situação que se iniciou a partir da usurpação do cargo da presidência da república pelo então vice-presidente, Michel Temer, que trouxe com mais ênfase a influência das empresas na educação (Albino; Da Silva, 2019).
A chegada de Temer consolidou a influência empresarial no Ministério da Educação (MEC), abrindo espaço para uma visão de educação pautada pela eficiência, resultados e flexibilidade - conceitos centrais do neoliberalismo. Uma das expressões mais visíveis desse movimento foi a imposição da BNCC, que começou a ser desenhada ainda no governo Dilma, mas que foi totalmente reformulada e implementada com maior controle no governo Temer. A BNCC tornou-se um instrumento central para padronizar o currículo nacional, atendendo mais aos interesses de empresas educacionais que lucram com materiais didáticos e serviços educacionais do que às necessidades pedagógicas das escolas públicas (Silva; Dutra-Pereira; Tinôco, 2021).
A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 trouxe um novo nível de autoritarismo para o campo educacional, sobretudo para o campo das políticas curriculares. Seu governo foi marcado por um discurso de guerra cultural e anti-intelectualismo, em que a educação foi sistematicamente atacada em nome do combate ao que ele chamava de “marxismo cultural” e “ideologia de gênero” (Dutra-Pereira, 2023). Sob o comando de ministros como Abraham Weintraub e Milton Ribeiro, o MEC implementou políticas de controle e cerceamento da autonomia educacional, promovendo um ambiente de censura e medo nas instituições educacionais.
Nesse contexto, a BNCC e a BNC-Formação foram reforçadas. A BNC-Formação, aprovada em 2019, durante o governo Bolsonaro, centralizou ainda mais as diretrizes para a formação de professores/as, retirando a autonomia das universidades e escolas de Educação Superior na elaboração dos currículos de formação docente (Dourado; Siqueira, 2022). A BNC-Formação fortaleceu o controle do setor privado sobre a educação pública ao padronizar a formação docente e promover uma educação mais técnica e menos crítica, alinhada aos interesses de grandes grupos educacionais privados.
O fortalecimento do setor privado na educação pública se manifestou de diversas formas durante esses governos. Isto posto, concordamos com Ximenes e Melo (2022, p. 744) de que havia “[...] interesses do campo privado-mercantil, com o intuito de manter a hegemonia capitalista no País, ao desconsiderar a necessidade histórica de uma política global de formação”. Nesse sentido, a privatização velada da educação pública ocorreu não apenas com o avanço de parcerias público-privadas, mas também com o crescimento de empresas que oferecem tecnologias educacionais, plataformas de educação a distância e materiais didáticos, todos alinhados à BNCC e à BNC-Formação.
Com a entrada de grandes grupos privados no controle da formação docente, o ensino passou a ser visto como uma mercadoria e a formação de professores/as tornou-se um campo lucrativo para empresas que fornecem materiais e certificações alinhadas às novas bases curriculares. Esse processo reflete um movimento mais amplo de precarização da educação pública, no qual o Estado se retira de seu papel como garantidor de direitos, abrindo espaço para uma lógica de mercado.
A Resolução CNE/CP nº 4, de 29 de maio de 2024, aprovada no governo de Lula, revela a continuidade desse processo, mesmo em um contexto de retomada de um governo progressista. Embora Lula tenha assumido o governo com uma possibilidade discursiva de reversão dos retrocessos promovidos por Bolsonaro, a aprovação desta resolução mostra que os interesses privados continuam enraizados no campo educacional, sobretudo no MEC, comandado por Camilo Santana.
A nova resolução dá continuidade às políticas da BNC-Formação, reafirmando a centralidade da BNCC e da formação docente tecnicista, voltada para resultados e eficiência. Mesmo com um discurso de recuperação da educação pública de qualidade, a resolução ainda mantém a lógica da padronização curricular e do controle sobre a formação de professores/as, o que reflete o quanto o setor privado consolidou sua influência no MEC. As empresas continuam a moldar a educação pública por meio de diretrizes que favorecem a comercialização de serviços educacionais, como plataformas digitais e treinamentos para professores/as.
A complexidade dos processos de inclusão de grupos tão diversificados - alunos especiais, indígenas, quilombolas, LGBQTIAP+, idosos, negros - demanda o domínio das bases teóricas da ciência da educação e das várias áreas do conhecimento tratadas com foco na educação, para que as linguagens e os conteúdos específicos possam ser tratados mediante metodologias adequadas para cada grupo. Não é com a organização curricular proposta que essa formação vai ocorrer, manifestando-se, dessa forma, uma grande contradição entre os princípios e a proposta curricular, como já apontado pela ANFOPE. De resto, a concepção americana de competência, embora sem a BNC-Formação, continua presente, uma vez que as diretrizes se atêm exclusivamente à formação, sem considerar a valorização do professor, os salários, os benefícios, as formas de contratação, a educação continuada e as condições materiais da escola, especialmente as demandadas pela educação inclusiva, ou seja, será sempre o professor o culpado pelo insucesso escolar (Kuenzer, 2024, p. 12).
A Resolução CNE/CP nº 4, de 29 de maio de 2024, agencia diversos processos na subjetividade da formação docente, afetando diretamente a forma como os/as professores/as se veem e atuam dentro de um sistema educacional moldado por políticas educacionais neoliberais. Esses agenciamentos têm um impacto significativo na construção da identidade do docente e na estruturação dos cursos de licenciatura, particularmente em uma licenciatura que pode se distanciar da realidade escolar.
Apesar de o governo Lula prometer reverter os danos causados pela extrema direita e pela política neoliberal de privatização da educação, a aprovação da Resolução CNE/CP nº 4 sugere que a luta pela educação pública continua sendo uma disputa complexa. O setor privado permanece forte e a ideia de uma educação pública e crítica é constantemente ameaçada pelas diretrizes neoliberais que já foram profundamente incorporadas às políticas educacionais.
Assim, a trajetória da Resolução CNE/CP nº 4 revela uma linha histórica marcada pela crescente influência do neoliberalismo na educação, pela privatização disfarçada do sistema público e pelo enfraquecimento da autonomia pedagógica nas universidades e escolas. Embora o governo Lula tenha a intenção de fortalecer a educação pública, ele ainda enfrenta grandes desafios em desmantelar a lógica empresarial que se consolidou no sistema educacional brasileiro, sobretudo quando o próprio ministro Camilo Santana abraça empresários que usurpam e querem comandar a educação pública, como aconteceu nos governos anteriores.
Os interesses neopragmáticos da Resolução CNE/CP nº 4/2024 podem ser analisados sob a ótica do neoliberalismo, considerando as implicações que essa resolução tem na formação inicial de professores/as. O neopragmatismo, em sua essência, visa a uma perspectiva prática e contextual das políticas e práticas educacionais, algo que a resolução tenta promover. Contudo, tal pragmatismo está alinhado aos princípios neoliberais, que priorizam eficiência, inovação tecnológica e adaptabilidade às demandas do mercado (Kuenzer, 2024).
Assim, a Resolução CNE/CP nº 4 estabelece diretrizes curriculares para a formação inicial de professores/as, com forte ênfase na flexibilidade curricular e na articulação entre teoria e prática. Esse enfoque, aparentemente positivo, sugere uma formação prática para atender às “necessidades reais” das escolas e da sociedade contemporânea, o que pode ser interpretado como uma influência neopragmática, uma vez que promove a adaptação às mudanças rápidas e, de forma pragmática, busca formar professores/as que se adequem às realidades dinâmicas do sistema educacional. Contudo, essa ênfase pode deslocar a formação crítica e reflexiva tradicional dos/as professores/as em favor de um treinamento técnico voltado a resultados imediatos.
O neoliberalismo, em termos educacionais, conforme Laval (2019), tende a promover a educação como uma mercadoria, moldada por demandas de mercado e produtividade. Ao integrar tecnologias digitais e uma formação com foco em competências específicas, como sugerido pela resolução, o documento contribui para o desenvolvimento de um modelo de educação cada vez mais corporativo e mercadológico.
Além disso, a resolução conduz o neoliberalismo ao promover a ideia de uma formação eficiente e “inovadora”, valorizando a autonomia docente no uso de tecnologias e a adaptação curricular ao contexto local. Entretanto, ao promover essa flexibilidade, abre-se espaço para a descentralização das responsabilidades do Estado, transferindo-as para as Instituições de Ensino Superior (IES), que devem buscar alianças com o setor privado para manter sua competitividade no mercado educacional (Fávero; Trevisol, 2020).
A formação inicial de professores/as, conforme delineada na Resolução nº 4/2024, destaca a importância da avaliação contínua por meio de processos regulatórios e mecanismos de controle, como o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade). Esses sistemas, ao objetivar a avaliação padronizada e a eficiência institucional, reforçam a lógica de mercado, tratando a educação como uma mercadoria que deve ser avaliada e “melhorada” de acordo com princípios empresariais de gestão.
Esse foco em resultados mensuráveis agencia na subjetividade dos/as professores/as uma visão tecnocrática de sua prática, na qual o sucesso educacional é avaliado a partir de métricas e indicadores de desempenho (Ravitch, 2011). Esse agenciamento pode alienar o docente de uma prática pedagógica que valorize processos complexos de ensino-aprendizagem que não se traduzem facilmente em números ou resultados quantitativos. Em uma licenciatura que não reflete a realidade escolar, isso significa que os/as futuros/as professores/as/as podem ser formados/as mais para atender às exigências burocráticas do que para lidar com as nuances e os desafios da sala de aula cotidiana.
A própria estrutura da Resolução CNE/CP nº 4/2024, com ênfase em currículos orientados por diretrizes nacionais e base comum, corre o risco de não refletir as realidades locais e contextuais das escolas. As IES, ao seguirem rigidamente essas orientações, acabam formando docentes com uma visão abstrata e distante das práticas reais das escolas, especialmente nas periferias e em comunidades marginalizadas. Esse agenciamento da subjetividade docente faz com que as/os professores/as em formação se tornem distantes da realidade escolar que deveriam entender e transformar. A formação que prioriza currículos nacionais padronizados e a inovação tecnológica pode resultar em licenciandos/as que chegam às escolas sem a capacidade de reconhecer as especificidades culturais, sociais e econômicas de seus alunos, limitando seu impacto como agentes de mudança social.
Os/As futuros/as professores/as serão formados/as para operar dentro de um sistema educacional que valorizará a maximização de resultados com a menor quantidade de recursos. Essa lógica produzirá docentes que veem a prática pedagógica como uma série de tarefas a serem cumpridas de forma rápida e eficaz, negligenciando a necessidade de uma pedagogia crítica e reflexiva. Quando a licenciatura não se conecta com a realidade escolar - especialmente em contextos de vulnerabilidade -, as/os professores/as podem não estar preparados/as para enfrentar a complexidade das condições de ensino, reforçando a ideia de que a docência é apenas uma questão de cumprimento de metas e indicadores (Soares, 2023).
A resolução estabelece um perfil de egresso focado em habilidades como “comunicação efetiva”, “criatividade”, “inovação” e “autonomia”, características que se alinham diretamente com as demandas do mercado de trabalho neoliberal, em que a adaptabilidade e a capacidade de inovar são altamente valorizadas. Isso criará um modelo de formação docente que prioriza a empregabilidade a qualquer custo e em situações precárias e a flexibilidade do/a professor/a, mesmo mediante o apagamento da profissão docente ao longo dos anos.
A Resolução CNE/CP nº 4/2024, portanto, agencia os interesses neoliberais ao buscar formar professores/as adaptáveis às exigências de um sistema educacional cada vez mais moldado pelo mercado. Embora traga elementos de inovação e adaptação contextual, há uma clara sobreposição de interesses mercadológicos e neopragmáticos, que podem comprometer uma formação mais crítica e socialmente engajada, resultando em uma educação que serve mais à lógica de mercado do que aos interesses democráticos e emancipatórios.
O neoliberalismo e o neopragmatismo se complementam, portanto, nas licenciaturas, sobretudo quando os cursos devem atender às exigências da mencionada resolução. Enquanto o primeiro impõe uma lógica de mercado, eficiência e padronização, o segundo fornece a justificativa prática para essas mudanças. A formação de professores/as, sob essa perspectiva, guardaria menos relação com o empoderamento de indivíduos capazes de atuar de forma crítica e transformadora na educação e mais com a garantia de que eles sejam eficientes, adaptáveis e prontos para atender às demandas do mercado e das novas tecnologias.
A Resolução CNE/CP nº 4/2024 exemplifica essa convergência ao alinhar a formação docente com os interesses privados, ao mesmo tempo que promove uma formação prática e imediata, voltada para resolver problemas sem questionar as causas subjacentes. A ênfase em currículos baseados em competências, em inovação tecnológica e na adaptação aos contextos locais reforça essa fusão entre pragmatismo e neoliberalismo, criando uma formação docente que é funcional ao sistema capitalista, mas que falha em preparar professores/as para uma educação verdadeiramente democrática e inclusiva.
5 Considerações finais
A formação de professores/as é uma questão central para o futuro da educação no Brasil e na América Latina, principalmente quando consideramos a feição pragmatista e empresarial para a formação humana. É fundamental que ela seja abordada com a seriedade e o comprometimento que merece, valorizando a diversidade de saberes e experiências e promovendo uma educação emancipatória e transformadora, para além dos princípios basilares do neopragmatismo, que insiste no praticismo.
Ainda sobre o neopragmatismo, defendido e referendado pela Resolução 2/2019, já revogada, mas que segue evidente na Resolução 4/2024, é importante destacar o ataque à valorização docente, que tem sido uma constante em muitos contextos educacionais. A desvalorização dos/as professores/as se manifesta de diversas formas, incluindo baixos salários, falta de reconhecimento profissional, sobrecarga de trabalho e precárias condições laborais.
Essa desvalorização tem consequências graves para a qualidade da educação, pois desmotiva os/as professores/as, compromete sua saúde física e mental e dificulta a atração e retenção de profissionais qualificados/as na área. Além disso, contribui para a desprofissionalização da carreira docente, minando a autoridade e o prestígio social dos/as professores/as e enfraquecendo sua capacidade de influenciar positivamente o processo educacional.
Diante desse cenário, é fundamental que nós, educadores/as, professores/as e pesquisadores/as da área de Educação, estejamos atentos/as aos desafios e contradições presentes nas políticas de formação de professores/as no Brasil. É necessário promover um debate público e crítico sobre o papel da formação docente na construção de uma educação de qualidade e inclusiva, que valorize a diversidade, a criatividade e o pensamento crítico. Somente assim será possível garantir uma formação de professores/as que esteja verdadeiramente comprometida com a transformação social e a promoção da justiça educacional.
Em última análise, tanto o neopragmatismo quanto o ataque à valorização docente representam sérios obstáculos para a construção de uma educação de qualidade socialmente referenciada e inclusiva. Consideramos fundamental valorizar a formação teórica e crítica dos/as professores/as, garantir condições de trabalho dignas e promover políticas educacionais que reconheçam o papel central dos/as professores/as. Como trabalhadores/as da educação, os/as docentes/as são agentes fundamentais para a formação humana na perspectiva contínua e esperançosa de fluxos civilizatórios.
Resumo
Main Text
1 Introdução
2 A disputa pela imposição de um conceito de “qualidade” na educação transversalizando a formação docente
3 Neopragmatismo na formação docente: o que está de/anunciado?
4 Contextos neopragmáticos para formação docente
5 Considerações finais