Editorial

ESCAVANDO OS FUTUROS DO PENSAMENTO E DA PRÁXIS GEOGRÁFICOS

Reuben Rose Redwood
University of Victoria, Brasil

Revista GeoUECE

Universidade Estadual do Ceará, Brasil

ISSN: 2317-028X

ISSN-e: 2317-028X

Periodicidade: Semestral

vol. 10, núm. 18, 2021

revistageouece@gmail.com



Ao longo do século passado, muitos autores escreveram sobre a história do pensamento geográfico (ANDRADE, 1977; DOMOSH, 1991; LIVINGSTONE, 1992; MOREIRA, 2008; NAYAK E JEFFREY, 2011; GOMES, 2012; CRESSWELL, 2013). A premissa básica dos estudos sobre o assunto - seja na forma de histórias monumentais, antiquárias ou críticas da disciplina – consiste na compreensão do passado como algo essencial para compreender as geografias do presente[1]. Por ser um geógrafo treinado em métodos históricos, considero essa visão relevante em virtude da dificuldade de se atribuir sentido ao momento contemporâneo sem o conhecimento das rotas tortuosas e das diversas trajetórias que moldaram as histórias de como chegamos aonde estamos (MASSEY, 2005: 24).

As histórias sobre pensamento geográfico, contadas a nós mesmos e a outras pessoas, desempenham um papel fundamental no processo de formação do sujeito acadêmico na geografia, ou seja, na constituição de um “nós” coletivo. Por isso, na maioria das vezes, narrar a história da geografia como uma disciplina não é apenas um exercício intelectual, mas também uma práxis política, uma vez que as narrativas históricas que utilizamos para constituir nossa disciplina estão diretamente implicadas na reprodução das posições do sujeito acadêmico que elas, aparentemente, descrevem. As contações repetitivas de narrações anglo-americanas da história do pensamento geográfico fazem parte da reprodução da hegemonia anglo-americana da disciplina e, conscientemente ou não, reforçam as “exclusões da geografia” no contexto acadêmico de forma mais geral (CRESSWELL, 2013), o que tem levado alguns a “construir uma epistemologia em outro lugar”, recentralizando as vozes marginalizadas no intuito de “revolucionar a disciplina e suas conexões mundiais ... [para] organizar, mobilizar e continuar construindo uma outra geografia” (OSWIN, 2020: 13-4).

Se, por um lado, as histórias do pensamento geográfico são importantes para a disciplina, por outro, há o perigo de sucumbir ao que Nietzsche (1980 [1874]: 14) chamou de “excesso de história”, o que restringe nossa habilidade de imaginar as possibilidades radicais de futuros alternativos. Simplificando, a geografia precisa entender seu passado para se orientar no presente. Da mesma forma, os geógrafos também precisam desaprender ativamente as tradições passadas para decretar futuros esperançosos que estão além das tradições existentes. Para tanto, é preciso uma reorientação no sentido de escavar os futuros possíveis do pensamento geográfico e da práxis.[2] Esse estudo não pretender prever o futuro das direções do “progresso” na geografia, nem pode se basear no raciocínio teleológico de uma trajetória linear e singular da história da disciplina, pois, foi assim que a história da geografia ficou presa no “túnel do tempo” do eurocentrismo (BLAUT, 1993: 3; CRUZ, 2017; ROSE-REDWOOD et al., 2020a). Por outro lado, uma alternativa modesta, porém radical, é conceber a geografia – passada, presente e futura – como um espaço constituído pela “existência contemporânea de uma pluralidade de trajetórias” (MASSEY, 2005: 12), indo além dos legados colonialistas, e se direcionando ao que Milton Santos (1986 [1978]) chamou de “nova geografia”. Portanto, como não há uma história única, mas plural, haverá uma multiplicidade de futuros de pensamento e práxis geográficos com objetivo de trabalhar para representar os “outros mundos” que desejamos habitar (GIBSON-GRAHAM, 2008).

Estamos, atualmente, no meio da pior crise de saúde pública global deste século, com exacerbação das crises política, econômica e social (ROSE-REDWOOD et al., 2020b). A escritora e ativista indiana Arundhati Roy (2020) descreveu a pandemia atual como “um portal, uma passagem entre este mundo e o próximo.” No entanto, se analisada relacionalmente, a pandemia é melhor compreendida como uma série de passagens entre uma multiplicidade de mundos, cujas relações entre os mundos são restringidas por desequilíbrios estruturais de poder, embora permaneçam abertas para o potencial dos novos modos de vir a ser. Certamente, precisamos nos engajar em análises geográficas críticas de desigualdades estruturais e injustiças sistêmicas, porém, é também importante cultivar e nutrir as possibilidades de geografias mais promissoras emergirem de forma local e global.

Como um geógrafo branco, cisgênero, nascido nos Estados Unidos e que tem vivido e trabalhado no Canadá por mais de uma década, eu estou consciente que a posição de sujeito privilegiado que atualmente ocupo no contexto acadêmico norte-americano é resultado de séculos de opressão racial, expropriação das terras indígenas e influência hegemônica dos discursos anglófonos no contexto acadêmico “global”, que passou a privilegiar algumas vozes de raça, de gênero e de classe. Ao mesmo tempo, tem-se tornado cada vez mais evidente para mim que muitos dos estudos geográficos mais intrigantes, corajosos e inovadores da última década emergiram de áreas da geografia negra, latina e indígena, bem como dos estudos geográficos do sul global (PULIDO, 2002; CRUZ e OLIVEIRA, 2017; HAWTHORNE, 2019; HUNT, 2014; LUCCHESI, 2018; KING, 2019; RAMÍREZ, 2020). Esse estudo representa, prefigurativamente, os futuros que estes estudiosos desejam, o que está transformando o que se tornará as histórias do futuro do pensamento e da práxis geográficos no processo.

Dito isso, a inércia dos legados coloniais de “acumulação por expropriação” (Harvey, 2003) e seus efeitos contínuos de moldar a produção do conhecimento geográfico no presente continuam a produzir trajetórias de estudos geográficos que privilegiam formas extrativistas de pesquisa e práxis - assim como as mineradoras canadenses continuam a enriquecer extraindo ouro da América Latina, independentemente de seus custos sociais e ambientais (ARSENAULT, 2021). Portanto, não basta celebrar a coexistência de uma “pluralidade de trajetórias”, pois algumas dessas trajetórias são baseadas na morte, destruição e apagamento de outra trajetórias. Em vez disso, nós precisamos cultivar trajetórias de estudos geográficos que valorizem as pessoas em relação aos lucros; a ajuda mútua no lugar da privatização neoliberal; o antirracismo sobre o essencialismo etnonacionalista; e a justiça ambiental ao invés da destruição ecológica.

A produção do conhecimento geográfico é um processo inerentemente carregado de valor, uma vez que não estamos em posição de olho de Deus, acima da vida social e política, como simples observadores dos assuntos do mundo ou como espectadores neutros. Em um mundo de desigualdades e injustiças profundas, a neutralidade acadêmica tem o efeito de legitimar o status quo e reforçar relações desiguais de poder na sociedade. Desta forma, eu acredito que nós, como geógrafos, temos a obrigação ética de desenvolver conhecimento acadêmico que possa contribuir para aliviar as injustiças socioespaciais, em vez de fortalecer ainda mais as hierarquias do poder opressor.

Contudo, vocês leitores, localizados no sul global, não precisam de estudioso algum do norte global para instruí-los sobre as virtudes éticas que devem informar o conhecimento geográfico. Suas próprias experiências e relacionamentos vividos no contexto acadêmico, e além dele, fornecerão, indubitavelmente, uma base para julgamentos éticos e políticos a respeito da sua práxis e pesquisa geográfica. Sinto-me honrado por ter tido a oportunidade de envolvimento em um diálogo entre “mundos” socioculturais. Como a possibilidade desse diálogo intercultural sugere, nossos mundos não estão tão isolados como geralmente supomos, uma vez que as pluralidades das nossas trajetórias se cruzam de diversas maneiras. É nesses pontos de interseção que as hegemonias obsoletas do passado podem ser reproduzidas ou contestadas.

O futuro não está gravado em pedra, e o passado não precisa ser uma camisa de força em nossas imaginações geográficas. Portanto, vamos construir outros mundos e futuros do pensamento e práxis geográficos juntos.

Agradecimentos

Eu gostaria de agradecer à Denise Cristina Bomtempo por ter me convidado para participar do Conselho Editorial da GeoUECE e escrever este editorial. Eu agradeço também à Sharon Dias por ajudar-me a navegar através dos estudos sobre a história do pensamento geográfico no contexto brasileiro. Por fim, sou grato à minha esposa CindyAnn Rose-Redwood por todos seus esforços para tornar meu trabalho possível.

Referências

ANDRADE, Manuel Correia de. O pensamento geográfico e a realidade brasileira. Boletim Paulista de Geográfia, v. 54, p. 5-28, 1977.

ARSENAULT, Chris. Canadian firm’s proposed gold mine in Amazon Rainforest a step closer to reality, CEO says. CBC News, March 28, 2021. Available at: https://www.cbc.ca/news/world/belo-sun-brazil-gold-bolsonaro-amazon-indigenous-environment-rainforest-business-1.5963002 (accessed on May 13, 2021).

BLAUT, James. The colonizer’s model of the world: Geographical diffusionism and Eurocentric history. New York: Guilford Press, 1993.

CRESSWELL, Tim. Geographical thought: A critical introduction. Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2013.

CRUZ, Valter do Carmo. Geografia e pensamento descolonial: notas sobre um diálogo necessário para a renovação do pensamento crítico. In Valter do Carmo Cruz e Denílson Araújo de Oliveira (eds.), Geografia e giro descolonial: Experências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017. p. 15-36.

CRUZ, Valter do Carmo e Denílson Araújo de Oliveira (eds.). Geografia e giro descolonial: Experências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017.

DAVIS, Mike. City of quartz: Excavating the fuure in Los Angeles. London: Verso, 1990.

DOMOSH, Mona. Toward a feminist historiography of geography. Transactions of the Institute of British Geographers, v. 16, n. 1, p. 95-104, 1991.

GIBSON-Graham, J.K. Diverse economies: Performative practices for ‘other worlds. Progress in Human Geography, v. 32, n. 5, p. 613-632, 2008.

GOMES, Paulo Cesar da Costa. A longa constituição do olhar geográfico. GeoUECE, v. 1, n. 1, p. 1-7, 2012.

HARVEY, David. (2003). The new imperialism. New York: Oxford University Press.

HAWTHORNE, Camilla. Black matters are spatial matters: Black geographies for the twenty-first century. Geography Compass 13: e12468., 2019.

HUNT, Sarah. Ontologies of Indigeneity: The politics of embodying a concept.” Cultural Geographies, v. 21, n. 1, p. 27-32, 2014.

LIVINGSTONE, David. The geographical tradition: Episodes in the history of a contested enterprise. Malden, MA: Blackwell, 1992

KING, Tiffany Lethabo. The black shoals: Offshore formations of Black and Native studies. Durham, NC: Duke University Press, 2019.

MASSEY, Doreen. For space. London: SAGE, 2005.

MOREIRA, Ruy. Coleção pensamento geográfico brasileiro (Vol. 1-3). São Paulo: Editora Contexto, 2008.

NAYAK, Anoop and Jeffrey, Alex. Geographical thought: An introduction to ideas in human geography. London: Routledge, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich. [1874]. On the advantage and disadvantage of history for life. Translated by Peter Preuss. Indianapolis: Hackett Publishing Co., 1980.

OSWIN, Natalie. An other geography. Dialogues in Human Geography, v. 10, n. 1, p. 9-18, 2020.

PULIDO, Laura. Reflections on a White discipline. The Professional Geographer, v. 54, n. 1, p. 42-49, 2002.

RAMÍREZ, Margaret. City as borderland: Gentrification and the policing of Black and Latinx geographies in Oakland. Environment and Planning D, v. 38, n. 1, p. 147-166, 2020.

ROSE-REDWOOD, Reuben, Barnd, Natchee Blu, Lucchesi, Annita Hetoevėhotohke’e, Dias, Sharon, and Patrick, Wil. Decolonizing the map: Recentering Indigenous mappings. Cartographica, v. 55, n. 3, p. 151-162, 2020a.

ROSE-REDWOOD, Reuben, Kitchin, Rob, Apostolopoulou, Elia, Rickards, Lauren, Blackman, Tyler, Crampton, Jeremy, Rossi, Ugo, and Buckley, Michelle. Geographies of the COVID-19 pandemic. Dialogues in Human Geography, v. 10, n. 2, p. 97-106, 2020b.

ROY, Arundhati. The pandemic is a portal. The Financial Times, April 3, 2020. Available at: https://www.ft.com/content/10d8f5e8-74eb-11ea-95fe-fcd274e920ca (accessed on May 11, 2021).

SANTOS, Milton. [1978]. Por uma geografia nova: Da crítica da geografia a uma geografia crítica. 3ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1986.

LUCCHESI, Annita Hetoevėhotohke’e. Indians don’t make maps’: Indigenous cartographic traditions and innovations.” American Indian Culture and Research Journal, v. 42, n. 3, p. 11-26, 2018.

Notas

[1] Para uma explicação sobre a diferença entre as histórias monumental, antiquária e crítica, veja Nietzsche (1980 [1874]).
[2] Sobre a noção de “excando o futuro,” veja Davis (1990).

Ligação alternative

Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
HMTL gerado a partir de XML JATS4R